Explicando a “trilha sonora” do livro Onde A História Termina

Explicando a “trilha sonora” do livro Onde A História Termina

Esse meu primeiro livro nasceu a partir de um roteiro para filme que eu escrevi com meus amigos Daniel Mattos e Marcial Renato no apagar das luzes do século passado. E, assim, como até se poderia prever, ele se tornou um romance bastante “musical”.

Bem recentemente, após eu deixar um exemplar com um outro camarada, Fábio Barcelos, que foi um dos meus “leitores cobaias” durante o processo de escrita, ele me procurou no WhatsApp e mandou uma mensagem assim: “pq vc nao faz uma playlist do livro?” / “Uma playlist no spotify com as músicas q inspiraram o livro” / “É muito musical e tal…merece”

E eu pensei: porra, que ideia genial!!

No dia seguinte mesmo preparei a playlist, que vocês conseguem acessar no link https://open.spotify.com/playlist/7l99gxu2OVIwSwnKhVIXja?si=c3f7a78f49424b52

Então, vou agora falar um pouquinho das músicas e como/por que elas entraram na história. Vamos lá:

1. No Blue Skies

Impossível fazer uma listagem com os meus artistas britânicos preferidos. Fosse tal ranqueamento possível, Lloyd Cole certamente estaria no topo. Essa música está presente no primeiro disco solo após separar-se dos The Commotions com um título bastante original:  Lloyd Cole. E, na verdade, ela não está diretamente mencionada no livro. Mas logo nas primeiras frases, o personagem Marcelo menciona que tinha escrito uma música em 10 minutos depois de seu produtor afirmar que eles ainda não tinham um single para o disco que estavam gravando. Bem, essa ideia surgiu ao fuçar o site do Lloyd, onde ele conta algo semelhante ocorrido: https://www.lloydcole.com/no-blue-skies/

2. O Mundo Anda Tão Complicado

Ah, Legião Urbana! Quem não gosta? Pois é, o babaca aqui passou uma boa parte de sua juventude desdenhando. Ainda criança, quando Legião estava estourando com o disco Dois ao som radiofônico de Eduardo e Mônica e Tempo Perdido, eu até que gostava, lembro de ter o vinil. Mas pouco depois eu resolvi aprender a tocar violão, guitarra, baixo (queria ser o Paulo Ricardo…) e, então, eu, um músico na flor da idade, encantado pelo virtuosismo de artistas como Steve Vai, Rush e Living Color, era incapaz de perceber a beleza na simplicidade das músicas de três acordes de bandas como Ramones e Legião. Felizmente, com o passar do tempo, eu comecei a entender que música boa não é (apenas) medida pela quantidade de notas por segundo e, resultado, Legião voltou a ser do grande caralho. Ué? Mas a música não está meio que sendo zoada no livro? Bom, sim, mas quem está zoando é o Marcelo. Eu acho a música legal. Apenas concordo com ele que é assim, digamos, “estranho” encaixar a palavra ‘feijoada’ em uma letra.

3. Your Love Is The Place Where I Come From

Teenage Fanclub é nome de boy band, não é, não?? Pois não se iludam, trata-se de uma das bandas mais indies de rock que a Escócia produziu em 1990 e que está em atividade até hoje. Eu conheci a banda apenas em seu quinto disco, Songs from Northern Britain (1997) em 1999,  em uma road trip de 3.500 km. Esse é daqueles raros álbuns que não possuem sequer uma única música ruim. Quando Marcelo, Fernanda e Rafael se encontram na casa noturna que apenas toca rock alternativo, quis prestar homenagem à banda que, possivelmente, tenha sido uma das primeiras portas de entrada abertas a mim para o maravilhoso mundo do rock indie britânico. Ah, e casa noturna é inspirada na Casa da Matriz, em Botafogo – Rio de Janeiro, e na festa Maldita!, que também ocorria todas as segundas-feiras(!) e que também não bombava antes de meia-noite (!!!).

4. It’s A Shame About Ray e 5. Little Fury Things

Durante muito tempo acreditou-se que o Brasil tinha o melhor futebol do mundo. Ainda que isso não seja mais verdade, falando em quem faz o que melhor, para mim é evidente que os ingleses fazem o melhor rock do mundo, assim como os americanos fazem os melhores filmes do mundo. Mas continuando a navegar pelo oceano do rock indie, deixemos por um momento as terras da Rainha para deixar entrar em cena dois representantes ianques.

Assim, como o Teenage, The Lemonheads e Dinosaur Jr. não então mencionados no livro por uma música específica, mas contextualizando o tipo de som ouvido na casa noturna ponto de encontro dos amigos. Mas a semelhança entre as bandas para por aí. The Lemonheads, depois de abandonar o som roqueiro hardcore punk, pode ser identificada por um som limpo com melodias simples que caem como uma luva ao rosto bonitão do vocalista Evan Dando e sua voz aveludada e aconchegante. Já Dinosaur Jr. tem duas características marcantes: as guitarras extremamente sujas, arranhadas (não estou falando do aspecto físico dos instrumentos, mas do som mesmo) e a voz horrível de J Mascis. Sim, a voz dele é horrível. Mas funciona. E como! E, convenhamos, voz horrível que funciona está longe de ser exemplar único no rock & roll. Ou alguém vai dizer que Axl Rose tem a voz bonita…?

6. The Final Cut

Quando você ouve falar em Pink Floyd, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça? Se não for The Wall, vai ser Another Brick In The Wall que, não por acaso (dããã), faz parte do The Wall. Se você for um fã mais profundo, aí já é possível que cite o álbum The Dark Side Of The Moon. Ou, ainda, se for um pinkfloydiano raiz, vai mencionar Ummagumma ou Atom Heart Mother. Mas nunca, em nenhum momento, não importa quantas conversas sobre a banda você realizar, alguém menciona The Final Cut. Isso é para mim o segundo maior mistério da humanidade depois das mulheres. The Final Cut é uma obra prima! E, indubitavelmente, o melhor trabalho da banda. Talvez vocês pensem que eu digo isso por ser o último disco com o Roger Waters. Mas, não, eu continuei gostado do Pink Floyd com David Gilmour liderando. Ah, então é porque The Final Cut foi gravado utilizando um sistema de gravação binaural (https://en.wikipedia.org/wiki/Holophonics) e eu estaria sobrevalorizando a técnica. Não, pois só é possível experimentar plenamente o som binaural se ouví-lo com fones de ouvido e eu adorei o disco muito antes de saber que tal técnica existia. A verdadeira razão é que o disco é simplesmente foda. Você pode gostar ou não. Mas não pode deixar de ouvir. E sobre a dualidade Waters / Gilmour, passado vários anos ouvindo a banda, dou o braço a torcer à torcida do primeiro: a fase Gilmour envelheceu muito pior do que a fase Waters.

7. Big Me

Essa música nem está no livro. E nem mesmo há citação à banda Foo Fighters. What? Isso mesmo, mas ela era a música referência para uma cena-clipe no roteiro demonstrando o início do relacionamento de Rafael e Marina. No último tratamento, a cena estava da seguinte forma:

CENA 41 – VÁRIOS

Temp Track: Big me. Cena Clip satírica de Rafael e Marina juntos numa boa, se divertindo. (A) Rafael recebendo cartas de baralho de Marina por debaixo da mesa; (B)trabalhando no roteiro; (C)Parque de diversões: Rafael ganhando algo ridículo para Marina; Rafael recebendo cartas novamente (jogo contra Marcelo e Fernanda); (D)lavando o carro, jogando água um no outro; (E)Rafael acompanhando e tirando sarro com o ensaio de Marina; (F) Novamente o jogo, mas agora quem dá a carta é Marcelo, onde se lê: “Pare de Roubar! Ass: Marcelo”; (G)namorando de tardinha silhuetados, ao fundo uma paisagem bonita. Depois de algum tempo juntos, Marina se levanta do banco, deixando Rafael sozinho.

8. Boys On The Radio

Esta é outra temp-track do roteiro, da banda Hole, para quando Rafael chega até o apartamento de Marina, mas não encontra ninguém em casa e, então, resolve esperar e acaba cochilando e seus sonhos o levando a remorar sua infância e a perda de suas queridas bolinhas de gude. A música ocorreria logo após a cena-clipe de Big Me e mostraria Rafael chegando de carro e estacionando em frente à portaria do prédio de Marina.  O que, pensando agora, está me parecendo um problema, pois tendo acabado de terminar uma cena-clipe, então, como iniciar a cena seguinte com outra música? De qualquer forma, esse é um problema que eu não preciso mais resolver… no livro, antes de Rafael bater na porta de Marina, há toda uma reflexão baseada no “Shared a Moment” do filme Chasing Amy, de Kevin Smith. Mas deixamos para falar sobre as referências de filmes em um outro texto.

9. Chão De Giz

Essa é uma das músicas mais fora da curva da playlist, não sendo nem em inglês, nem rock. Mas ela funciona para dar vida à Mel, a personagem secundária de mais importância e que também não parece pertencer ao mesmo universo dos quatro principais. Aliás, Mel é uma personagem quase etérea, até um pouco irreal, caracterizada como uma hippie bicho-grilo que não se incomoda em ser vista nua pelo namorado da roommate que ela mal conhece e, ao mesmo tempo, tem um corpo voluptuosamente escultural que personifica perfeitamente Afrodite em uma festa à fantasia. Ou seja, uma personagem fruto da mente delirante de um autor hétero masculino. Sejamos sinceros. Mel não é um pouco irreal. É totalmente irreal.

10. I’m Gone

E novamente temos Lloyd Cole, único artista a aparecer duas vezes. Eu avisei que se fosse possível criar uma lista dos artistas britânicos de quem mais gosto, ele estaria lá pelo topo. Embora a música não seja diretamente mencionada no livro, é mais do que justa sua presença aqui porque eu simplesmente me apropriei de um de seus versos. A música diz “How could it be so wrong when it was so right? When it was so right”. E eu usei da seguinte forma: “A chuva começa a apertar e a roupa de ambos passa a ficar grudada a seus corpos. Rafael é o primeiro a desviar o olhar, buscando ao redor algo que pudesse trazer sentido àquele momento, alguma coisa que explicasse de que forma eles haviam se tornado incompatíveis. Como poderia estar tudo tão errado quando tudo estava tão certo? Tudo estava tão certo…” Lloyd, essa aqui eu devo a você.

11. Sunna

Esta música é a mais alternativa do set pelo simples fato de que, apesar de ter toda a roupagem de um indie inglês, ela é de uma banda brasileira do Rio de Janeiro. Isso mesmo! Pelvs é seu nome e eu tive o prazer de conhecer o baixista Rafael Genu, que foi contemporâneo meu na Escola de Comunicação da UFRJ, e o vocalista Gustavo Seabra, com quem tentei por um tempo fazer um projeto de músicas igualmente indies, mas que acabou não se concretizando. Aliás, assim como o Marcelo no livro, eu cheguei a gravar demos de mais de 40 músicas no Protools em meu computador, algumas delas, modéstia à parte, muito boas. Mas minha total incapacidade de cantar minimamente aceitável é fator proibitivo de tornar as demos públicas. Além de que as músicas foram compostas pensando em uma vocalista mulher. Voltando à Sunna, é uma música de 5 minutos e 40 segundos cujos 4 minutos finais (um looping de voz e guitarra) estão entre os mais tristes oferecidos pelo rock indie. E a concorrência não é nem um pouco pequena. Embora a música não seja citada no livro, não vou contar o momento em que ela ocorre no roteiro (quase escrevi “no filme”…) para não dá spoiler.

12. Summer Of ‘69

Chão de Giz era fora da curva por não ser nem em inglês, nem rock. Bryan Adams é rock e é em inglês (ele é canadense), mas é pop, pop, pop, pop, pop, e não adiante dizer chega que ainda é mais pop do que isso, chegando constantemente a ser brega. Não concorda? Então assista ao clipe de I Can’t Stop This Thing We Started: https://www.youtube.com/watch?v=lP4Nnek6DCo

O cara cavalga uma guitarra!!! Cavalga uma guitarra!!!! É verdade que tínhamos acabado de sair dos anos 80, mas tudo tem limite.

Voltando a Summer Of ’69, ela é citada por Rafael no festão anual do colégio onde ele estudou, quando ele se emociona ao ver um conjunto de idosos levando no peito a faixa de campeão do campeonato de futebol de 1969. Então, Rafael pensa algo que na verdade é um erro. Ele cita que, de 1969, quando nem era nascido, ele “lembra” apenas da chegada do homem à lua e dessa música do Bryan Adams. Só que a música não é de 1969, mas de 1984, ano de lançamento do disco Reckless. Ou seja, escrevendo essa parte, eu me deixei contaminar pelas lembranças do Bryan (pois ele viveu o verão de 1969, não eu, nem Rafael…). Eu percebi isso ainda antes de fechar o texto final do livro, mas acabei achando o paradoxo interessante. Afinal, estas foram as duas coisas que de fato me vieram à minha cabeça quando pensei no ano de 1969 e acabei deixando Rafael cometer o mesmo erro que eu.

13. À Sua Maneira

Um dos melhores rocks latino-americanos é da banda argentina Soda Stereo, cujo título original é Musica Ligera, de 1990. Para terem noção do apelo rock pop da música, a gigante Coldplay, quando da turnê do álbum A Head Full of Dreams, lançou em 2018 o disco Live In Buenos Aires gravado ao vivo em um show no Estádio Ciudad de la Plata. E, para delírio dos portenhos, fizeram um cover da canção hermana.

Aqui, em terra brasilis, uma fato no mínimo curioso aconteceu: Capital Inicial lançou sua versão da música em 2002 no disco Rosas E Vinho Tinto alegando não ter conhecimento que os Paralamas do Sucesso já haviam gravado sua versão lançada em 1996, em Nove Luas.

Aqui no livro, em momento extremamente apropriado, não tive como não citar a versão do Capital devido a seus versos iniciais “Ela dormiu no calor dos meus braços e eu acordei sem saber se era um sonho.”

14. We Close Our Eyes

A californiana Oingo Boingo atingiu sucesso grandioso no Brasil a partir da inserção de sua música Stay na trilha sonora da novela global Top Model, exibida a partir de setembro de 1989. Esse fato em si é curioso, pois demonstra como, naquela época, as músicas viajavam muito mais vagarosamente, pois Stay fora lançada 4 anos antes no disco Dead Man’s Party, faixa título que permanece como uma das músicas mais conhecidas da banda, ao lado de Just Another Day, Weird Science e Not My Slave, também impulsionada por aqui a partir de sua utilização na versão brasileira da abertura da série Barrados no Baile (Beverly Hills, 90210).

Mas, em minha opinião, a música que mais merece passar à posteridade é We Close Our Eyes, que sensivelmente demonstra como a vida passa em um piscar de olhos e que a qualquer momento a morte pode estar batendo em sua porta e por isso não há tempo a perder com besteira. Se você achar que eu valho a pena, se você achar que não é tarde demais, nós podemos nos apaixonar, se não tentarmos duro demais, nós podemos nos apaixonar.

15. Let Me Move On

Gene é uma banda britânica que ficou eternamente marcada por sua comparação com The Smiths, seja pela sonoridade de suas músicas, mas principalmente pelo timbre do vocalista Martin Rossiter, cuja voz partilha da mesma solidão amargurada de Morrissey. Mas se a semelhança é extremamente evidente no primeiro disco Olympian, de 1995, ela foi aos pousos esvaindo-se até o quinto e último trabalho Libertine, de 2002. E é justamente dele que cito a primeira faixa, cuja minha interpretação para o refrão vai no sentindo de reconhecer que a partir de agora iremos seguir caminhos separados. Mas não negligencie o papel que eu tive em sua vida. E eu vou seguir em frente.

16. Treasure

Fechando a primeira metade da playlist com The Cure, cujo vocalista e guitarrista Robert Smith (que, na boa, usar até hoje o mesmo visual gótico que ele tinha há 30/40 anos é esquisito demais…) uma vez declarou que uma de suas principais metas musicais era criar canções de amor que não soassem brega. Quanto a isso, apenas algo a dizer: mission accomplished! In Between Days,              Close to Me, Catch, Just Like Heaven, One More Time, Pictures of You, Lovesong, Friday I’m in Love, A Letter to Elise. A lista é infinita…

Para o livro, eu trago Treasure, uma faixa bastante desconhecida do disco Wild Mood Swings, de 1996, que não configura entre os mais bem cotados da banda, mas que eu vou ter que concordar em discordar. Estes versos são simplesmente lindos demais: “Remember I was always true / Remember that I always tried / Remember I loved only you / Remember me and smile / For it’s better to forget / Than remember me and cry.

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[Continua: Explicando a “trilha sonora” do livro Onde A História Termina – Parte 2]

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Marcos Felipe Delfino

Marcos Felipe Delfino

Nascido em 1975, Marcos Felipe, também conhecido como Marquinho, ou Marquito, ou Kinets, já tentou ser músico, fotógrafo e cineasta entre outras frustrações. Hoje é servidor público.

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