Explicando a “trilha sonora” do livro Onde A História Termina – Parte 2
Conforme prometido, volto agora a falar da segunda metade das músicas de OAHT – Onde A História Termina, cuja playlist é encontrada no Spotify em https://open.spotify.com/playlist/7l99gxu2OVIwSwnKhVIXja?si=5250e66dbd744fae
Se você perdeu as explicações para as 16 primeiras músicas, acesse https://maxie.com.br/explicando-a-trilha-sonora-do-livro-onde-a-historia-termina/
Sem mais demora:
17. Rap do Silva
Ao lado da já citada Chão de Giz, Rap do Silva briga pelo posto de música mais fora da curva da playlist. E embora a canção se auto intitule como rap, penso que se trata de uma das representações mais genuínas do funk carioca e que, a propósito, em 2022 completam 26 anos do seu lançamento.
A situação no livro na qual ela é citada surgiu de uma semana no início janeiro de 2021 em que passei com a família em Ilha Grande, onde nunca tinha ido. Lá há uma enseada abrigada bem bonita chamada de Lagoa Azul. Só que o que poderia ser um lugar paradisíaco tal qual o do filme com a Brooke Shields (não faço ideia de quem era o ator, só lembro que tinha cabelo de anjinho), se transformou em passarela para lanchas, iates e jet-skis competindo para ver quem consegue chamar mais atenção com caixas de som cada uma no volume máximo, fazendo o som virar uma cacofonia insuportável. E, já que Ilha Grande fica no Rio de Janeiro, o ritmo predominante era funk. Não gosto. Pronto, falei. Mas Rap do Silva é muito boa.
18. A Hole In The Earth
Daughter é um trio londrino que eu só vim a conhecer após a banda não existir mais. Mas em sua curta existência, eles lançaram três álbuns fantásticos entre 2013 e 2017, com um punhado de músicas que disputam entre si minha preferência. A que mais costuma ganhar é a letárgica A Hole In The Earth e por isso mesmo ela é a que Marina coloca para ouvir.
19. Space Oddity
A presença do astronauta na história existe desde as primeiras versões do roteiro (tenho certeza de que, em algum lugar, eu escrevi que o filme seria caro…) e costuma ser ponto de questionamento sobre sua função na narrativa e sobre sua verossimilhança, uma vez que astronautas não são lançados ao espaço em missões solitárias. Bem, o papel do personagem fica claro ao final do livro. Quanto à irrealidade da situação, trouxe Space Oddity justamente para não me perturbarem muito. Se o Major Tom do Bowie pode estar sozinho no espaço, então o Comandante Bob do Delfino também pode. A final de contas, trata-se de uma comédia romântica.
20. There Is A Light That Never Goes Out
Esta e as próximas quatro músicas não são citadas no livro, mas apenas as bandas das quais pertencem e fazem parte do repertório que a banda do Marcelo toca na festa próxima ao final. Esta sim é uma situação muito mais inverossímil do que astronauta sozinho no espaço: festa com banda tocando rock ao vivo? Foi-se o tempo.
Para Smiths, escolhi There is a Light that Never Goes Out porque, além de ser sensacional – mas isso várias dos Smiths são –, é uma das raras letras de Morrissey que carrega esperança ao invés de sofrimento. A frase inicial é um convite à vida: Take me out Tonight / Where there’s music and there’s people / And they’re young and alive. 😊
É verdade que a alegria na música tem um viés bastante singular, permeando as angústias de Morrissey sempre presentes: And if a double-decker bus / Crashes into us / To die by your side / Is such a heavenly way to die / And if a ten ton truck / Kills the both of us / To die by your side / Well, the pleasure, the privilege is mine
Bom, é Morrissey. Mas, ao fim, há uma luz que nunca se apaga.
21. Coffee & TV
Blur é tida como a líder do movimento conhecido como Brit-pop e que abriu as portas para uma inundação de bandas britânicas com guitarras indies que dominaram a cultura pop britânica nos meados dos anos 90, entre elas Gene, já citada aqui. Com a proximidade do fim da década e o esfriamento do movimento, a banda até pensou em se dissolver, mas optou por experimentar a sonoridade do rock indie americano o que acabou por reinventar a banda e fazê-la alcançar sucesso fora da Inglaterra. Coffee & TV é desta fase e faz parte da trilha sonora do filme Cruel Intentions (trilha muito boa de ouvir: https://open.spotify.com/playlist/1aEByDGbZ8ezg8louoekpA?si=789cb87eb65a4e0a).
22. Don’t Look Back In Anger
Até hoje lembro perfeitamente da primeira vez em que ouvi essa música: julho de 1996. Tinha ido a uma comemoração de aniversário de uma colega da faculdade na Public e Co, uma minúscula e extinta danceteria na esquina das ruas Pacheco Leão e Abreu Fialho. Determinada hora da balada, eis que aparece na pista de dança Luana Piovani, linda, deslumbrante e quase 10 cm mais alta do que eu. Mas como não tinha nenhum marmanjo à tira cola, fui tentar minha sorte. Depois de um olá simpático e algumas frases trocadas, dei-me por satisfeito e fui embora levando comigo um sorriso de despedida. Saí da danceteria, entrei no meu Voyage 84 branco e liguei o rádio bem nos acordes iniciais de piano da música. E que música! É possível (provável) que eu ainda estivesse sob o encanto daquela deusa, mas não importa. Continuo achando a música foda até hoje.
23. Anarchy In The UK e 24. London Calling
Pioneiras nos anos 70, tanto Sex Pistols quanto The Clash estão entre as bandas que mais se destacaram na transformação do punk em um movimento cultural global, a primeira sob uma ótica niilista e a segunda carregada de uma moral ideológica e política de esquerda.
London Calling é uma referência às reportagens da BBC que foram transmitidas durante os períodos mais sombrios da Segunda Guerra Mundial: “This is London Calling”, dizia a voz antes de dar a notícia às pessoas alarmadas por sua sobrevivência em meio à guerra mais destrutiva da história.
Anarchy in the UK já é explicada pelo próprio título e causou certo alvoroço na Inglaterra com suas letras citando violência contra o governo.
25. I Want To Break Free
Queen é uma banda que eu tinha deixado de lado até ver o filme Bohemian Rhapsody, que me fez lembrar o quanto de músicas boas a banda tem. Uma das mais icônicas é I Want to Break Free que, ao contrário do quase todo mundo pensa, não se trata de uma declaração de Fred Mercury sobre sua homossexualidade. A composição é, na verdade, do baixista John Deacon, o mais reservado e tímido do quarteto, e teve o próprio como motivação.
No livro, diferentemente das quatro músicas anteriores, ela é diretamente citada na festa, sendo tocada pela banda de Marcelo. E, como a festa é à fantasia, os músicos, especialmente para essa música, se vestem como no clipe. Se nunca viu, veja: https://www.youtube.com/watch?v=f4Mc-NYPHaQ
O clipe não foi bem recebido em vários lugares, inclusive no Brasil. Lembrem-se que o ano era 1984, quando o movimento LGBT era praticamente inexistente.
Sobre a música, ela é ótima. Mas o motivo pelo qual colocaram uma galinha para fazer o solo no lugar de uma guitarra eu nunca vou entender.
26. Don’t Talk Just Kiss
Mais do que um gosto especial por esta música, o hit de Right Said Fred, que é uma deliciosa fatia da música disco dos anos 90, entra na história dando vida a um flerte de Rafael durante o show do amigo. Essa relação personagem/música volta a acontecer um pouco adiante com a música I Kissed a Girl, de Kate Perry. Fico imaginando como essa personagem se comportaria se começasse a tocar I Touch Myself, dos australianos Divinyls.
27. Ring My Bell
Aqui temos uma situação trazida diretamente do roteiro e que, por sua vez, foi inspirada nas conversas sem sentido dos tempos de faculdade. Embora a música seja de 1979, ela era figurinha certa nas festinhas dos anos 90, assim como Summer Nights, de Grease, na segunda metade dos anos 80. E, como não podia deixar de ser, era impossível não dar um sentido sexual para a frase do refrão “you can ring my bell”.
Quando estava reformulando a cena para o livro, eu não quis deixar apenas o besteirol sexual sobre a conotação e fui pesquisar sobre a música para ver se algo interessante surgia. E surgiu! Antes de ser gravada por Anita Ward, a música foi feita para ser gravada por Stacy Lattisaw que, na época, tinha 11 anos! 11 anos!! É verdade que a versão gravada por Anita era diferente da que foi proposta para Stacy. Mas mesmo assim…
28. I Kissed a Girl
Katy Perry teria dito que a música foi inspirada em Scarlett Johansson. Não que elas realmente tivessem se beijado, mas que se Scarlett quisesse, Katy toparia. Mas Katy também já disse que a letra foi inspirada por uma amizade com uma menina na adolescência e que elas realmente haviam se beijado. Katy nunca revelou o nome, mas Miley Cyrus já teria dito que a música seria sobre ela. Por outro lado, Macy Gray comentou em uma entrevista que a música teria sido inicialmente oferecida a ela antes de Katy a ter gravado, o que parece desmentir a pessoalidade das versões anteriores.
Bem, conforme Larry McMurtry, quando você precisar escolher entre fato e lenda, publique a lenda. Então, escolha aí a versão que achar mais interessante. Eu fico com a da Scarlett sem pestanejar.
29. Vamos fugir
Aqui é o momento quando eu mordo e assopro. Vamos fugir é citada em dois capítulos diferentes, deixando claro que se trata da versão do Skank.
A mordida se dá quando Rafael reclama dos integrantes da banda mineira, que teriam recusado a sincronização da música em um filme. E isso de fato ocorreu. Não com o Rafael, mas comigo. Quando nós estávamos desenvolvendo o roteiro do que veio a ser o filme Dia de Preto (2011), houve uma versão na qual parte do filme seria um musical com músicas conhecidas. Logo, para termos noção do quanto isso iria custar, começamos a pedir autorização para várias das músicas que estávamos pensando em usar. Algumas eram um pouco mais caras, outras um pouco mais baratas, mas apenas quem deu uma resposta NÃO curta e grossa foi o Skank para Vamos Fugir. Não pediu para ler o roteiro, não deu justificativa. Para nós chegou apenas a recusa. Achamos a atitude bastante esnobe, principalmente porque todos os outros deram autorização, inclusive o próprio Gil, que é o autor original de Vamos Fugir. É bem possível que a recusa nem tenha vindo diretamente de Samuel Rosa e Cia. É possível que eles nem tenham sequer ficado sabendo da requisição, esta tendo sido sumariamente rejeitada por um administrador de direitos bobalhão. Mas, quando você precisa escolher entre fato e lenda… ressentimentos à parte, esta versão da música feita pelo Skank ficou simplesmente sensacional, e é ela que Marcelo performa ao final caindo como uma luva na cena de apoteose. Assoprei.
30. Beast of Burden
A antepenúltima música da playlist também não configura no livro, sendo remanescente de um dos tratamentos do roteiro. Mas fiz questão de trazer essa bela canção dos Stones para cá para tentar esquecer um pouco de sua péssima utilização em 50 Tons de Cinza.
A música, já uma senhora de meia idade, tem sido em vão ao longo de décadas alvo de tentativas de decifrar seu significado. E para essas tentativas, cito o próprio autor da música “É incrível como existem pessoas que passam tanto tempo tentando decodificar algo completamente indecifrável”. Gente, o cara cheirou as cinzas do pai. Aproveitem a música sem querer extrair um sentido completamente objetivo dela.
31. Here’s Where The Story Ends
E, finalmente, ela! Essa história começou a ser escrita por mim em 1998 (como já disse, em forma de roteiro para cinema). Após algumas ideias iniciais, meu amigo Daniel entrou no desenvolvimento (Marcial juntou-se um pouco depois). Sem tirar mérito de todas as contribuições de ambos – não foram poucas – aquela que eu acho mais relevante foi feita despretensiosamente por Daniel. Em um final de semana qualquer que eu fui até sua casa, ele sacou um CD e disse algo como, “Ouça esta música aqui, é bem teu estilo e tem um título interessante.” Ouvi. Não é que ela tenha o meu estilo. A música é FODA! E o título é mais do que interessante. É obviamente o nome do filme!! Só que sem o “aqui”. E assim o projeto foi batizado, quando sequer havia um argumento completo ainda para todo o enredo. E ao contrário do que é bastante comum em vários projetos (Dia de Preto, antes foi Depois do Fim, antes foi A Pedra do Milagre – novela das 6, não?), Onde A História Termina foi Onde A História Termina ao longo de todos os 24 anos passados até o projeto assumir um forma concreta. Nunca foi nome provisório. Nunca foi colocado em dúvida se poderia haver outro melhor. Sempre foi, simplesmente, perfeito.
O FIM
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