As Armadilhas da Renúncia Fiscal
Em 1999, motivados pela experiência bem sucedida na produção do curta-metragem “O Bolo e o Queijo”, e pela retomada da produção cinematográfica brasileira ancorada nas leis de incentivo, eu, Daniel Mattos e Marcos Felipe Delfino decidimos abrir uma empresa produtora e desenvolver um projeto de longa-metragem, para tentar captar recursos através do Art. 1º da Lei do Audiovisual. O negócio parecia promissor, uma vez que já tínhamos demonstrado capacidade técnica de realização, e o mecanismo de incentivo prometia às empresas contribuintes um abatimento de mais de 100% do valor investido, além de participação nos resultados comerciais do filme.
Para tornar a iniciativa ainda mais palatável, decidimos adaptar um argumento que já tínhamos pronto (Batanka!, que você pode ler aqui), mas que parecia caro demais para ser realizado por uma empresa estreante. Foi assim que surgiu o projeto “Depois do Shopping”, inspirado no filme “Depois de Horas”, de Martin Scorsese, e nas comédias adolescentes da década de 80. A trama podia ser resumida como uma madrugada alucinante passada no interior de um shopping center, com nosso protagonista sendo impedido pelas situações mais estapafúrdias de voltar para casa. Seria uma produção simples, completamente rodada em cenas internas, com elenco reduzido e poucas diárias.
Após a constituição da empresa, o passo seguinte seria a aprovação do projeto na Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, uma vez que a ANCINE ainda não existia na época. Lembro que passamos dias elaborando uma análise técnica detalhada de todas as cenas, planejando as etapas de produção e orçando minuciosamente cada custo do projeto. Com toda a burocracia pronta, certidões emitidas e documentação completa do projeto encaminhada, aguardamos ansiosos o dia fatídico em que o Ministério publicou a aprovação do filme no Diário Oficial da União. Naquele momento, aquela parecia ser a etapa decisiva, e a captação dos recursos o desenrolar natural de um projeto cuidadosamente preparado.
Mas estávamos completamente enganados. Logo após a aprovação, descobrimos que as etapas burocráticas ainda não haviam terminado. O Art. 1º da Lei do Audiovisual obrigava que as produtoras contratassem agenciadoras registradas na CVM para que fossem emitidos os certificados de captação. Após algumas reuniões com executivos do ramo, percebemos que algumas das empresas que ofereciam o serviço exigiam o percentual de agenciamento dos valores captados (10% do orçamento), mesmo se o projeto não captasse recurso algum.
Aquela era uma situação inaceitável para nós. Felizmente, com a ajuda do Tuinho Schwartz, obtivemos o contato da Regina Werner, que trabalhava na época na Multistock Máxima, uma empresa agenciadora que também realizava o serviço. Regina foi um anjo da guarda naquele momento, entrando no negócio pelo risco, aceitando que a remuneração de agenciamento somente seria devida em caso de sucesso na captação. Em reuniões onde demonstrávamos o nosso entusiasmo, lembro de suas advertências em tom materno: “Vocês realmente querem entrar nesse negócio? Olha que já vi isso arruinar vidas, destruir casamentos”.
Na época, nenhum de nós era casado. Éramos jovens profissionais do mercado audiovisual, completamente decididos a gastar nossas economias para tocar em frente o projeto do longa-metragem. Além do Tuinho Schwarz, que seria nosso coprodutor, conseguimos o apoio do ator Danton Mello, para quem tínhamos idealizado o papel do protagonista, e nos ajudou a desenvolver o material de divulgação do filme.
De posse dos certificados, fomos para o mercado captar recursos. Logo de cara, a parceria com um shopping center, que nos parecia algo factível, demonstrou ser um obstáculo quase intransponível. Com a ajuda de um dos nossos amigos de faculdade, Rafael Genu, que trabalhava na época na Artplan, conseguimos uma reunião com Roberto Medina, e de lá saímos com um contato no Barrashopping, locação para o qual tínhamos desenhado inicialmente as cenas do filme.
A negociação foi difícil, envolveria algumas concessões no roteiro e no orçamento, mas saímos das reuniões com os representantes do shopping com a permissão para que o filme fosse realizado no estabelecimento. O ponto negativo, no entanto, foi que não poderíamos divulgar a parceria até que todo o orçamento fosse captado. Esse foi mais um obstáculo inesperado, pois esperávamos justamente o apoio do shopping como trampolim para a captação dos recursos junto às empresas sediadas no local.
E assim, durante os anos de 2000 e 2001, continuamos nossos esforços de captação junto às grandes empresas do país, inscrevendo o projeto nos editais de estatais e na Lei Municipal de Incentivo à Cultura do Rio de Janeiro, obtendo todas as autorizações necessárias. Conseguimos algumas reuniões e muitas negativas, mas na maioria das vezes não foi possível o contato nem mesmo com os executivos responsáveis pela avaliação dos projetos. Através do Tuinho, conseguimos um almoço com um dos principais produtores do país, que finalizou a reunião com uma pergunta difícil de engolir: “Afinal, vocês querem fazer esse projeto, ou querem que ele seja feito?”. Nenhum de nós respondeu na hora, mas a resposta era clara.
Tínhamos aprendido uma dura lição: no modelo de renúncia fiscal, quando o Estado delega às empresas a decisão de investimento em projetos culturais, a “network” para a captação de recursos era a etapa mais importante do que o desenvolvimento do projeto em si, mais importante do que toda a burocracia necessária para a realização do mesmo.
Poucos anos depois, desistimos do financiamento público e começamos a desenvolver um modelo próprio para viabilizar a produção, com base em permutas, colaboração e muita garra de toda a equipe e elenco. Mas já era outro projeto. A comédia adolescente com finalidade de seguir a esteira do cinema comercial tinha morrido soterrada pelas armadilhas do único mecanismo de incentivo público disponível naquele momento.
Somente anos mais tarde, quando eu já estava trabalhando na ANCINE, pude conhecer de fato os atalhos e caminhos bem-sucedidos para o Fomento Indireto. O mesmo produtor que tinha nos feito a pergunta difícil naquele almoço fez uma proposta para comprar o roteiro do “Depois do Shopping”, o que recusamos prontamente, considerando o conflito de interesses. Agora, éramos agentes do Estado, envidando todos os esforços possíveis para que os outros não vivessem os dissabores que tínhamos experimentado. Com o novo filme já na lata (“Dia de Preto“), produzido com recursos próprios, era o momento de usar este conhecimento para facilitar a vida dos demais produtores, usando nossa experiência como um vetor efetivo para a democratização do acesso aos recursos públicos disponíveis.