Deriva

Deriva

Por um momento pensei estar me afogando. Cansado demais para seguir nadando, desisto de lutar para manter à superfície e entrego o corpo ao mar. O empuxo que me tragava às profundezas subitamente enfraquece. Meu corpo amolecido ondula junto à superfície como um trapo e a água sustenta, indiferente, o peso de minha existência. Me pergunto se a escuridão abaixo reclama minha alma ou se é meu espírito que a deseja enquanto finge combatê-la.

Essa tem sido minha existência. Há quanto tempo, já nem sei. A água salgada que bebo, pouco a pouco e involuntariamente, já me consumiu nervos suficientes para desfazer as memórias como o metal do navio em que naufraguei. Seu nome era Sonho e, embora pensasse ser seu tripulante, hoje sei que era apenas mais um passageiro naquela embarcação que não me pertencia nem levaria ao meu destino.

De lá pra cá flutuo à deriva no mar que não me vê. Em tempo aprendi abandonar o falso senso de autodeterminação. Jamais tive suficiente força para escapar às correntes ou percepção bastante para orientar meu esforço, sequer os sentidos que me diriam da direção que sigo, noite após noite. As estrelas percorrem o céu e eu sem saber se estou indo ou se é o firmamento. Poderia ter estado o tempo todo no mesmo lugar enquanto o mundo se move.

Há dias melhores que outros, como antes havia. No melhor deles, um entardecer sem vento deixou as nuvens de chuva lançarem água doce sobre o espelho calmo do meu leito líquido. Deitei-me olhando o zênite e abri a boca, agradecendo as gotas que o acaso ou a graça lançavam na minha goela e que lavavam meu rosto. No pior, as ondas foram maiores que a chuva e a tentativa de buscar a água doce do céu era castigada por uma cuspida de sal na garganta engasgada, como se mar e nuvem conspirassem na brincadeira perversa. Dia e noite, tempestade e calmaria, desespero e paz. No meio disso, o tédio. Espera sem o esperado. Enigma sem mensagem. Sono sem descanso.

Sonho. Vago com meu cão pelo bosque ao som do vento suave nas folhas e os pássaros cantam. Busco o sol da manhã que ferfura as copas para aquecer a pele no ar frio da madrugada que passou. Paro na clareira iluminada e olho ao redor. Quem sou eu nessa paisagem? Qual dessas árvores é minha alma na floresta da existência? 

Meus olhos são atraídos para a paineira vigorosa. Seu troco largo, protegido por espinhos, é o pilar de uma catedral. A alto dossel coroa a encosta acima de tudo mais. Flores rosadas de abril fazem um tapete que anuncia seu domínio enquanto suas raízes tomam pelas mãos as plantas aos seus pés como crianças. Essa é a árvore que eu queria ter sido. A árvore que não sou e não serei. Sei disso quando contemplo a plena realização de sua potência e meu coração se aperta em humildade e melancolia. Sou indigno dessa ambição, por isso abaixo a cabeça e vejo outra árvore, mal enraizada nas rochas em que o humus não se fixa. De seu canto sombrio estende os galhos secos buscando desesperada a luz que as demais desperdiçam. O pouco verde que lhe resta não serve ao propósito de seu crescimento, mas sustenta o sofrimento provisório de sua existência, pouco acima da sobrevivência. Essa é a árvore que me sinto por desconsolo de não ser aquela que almejo. Mas também é a árvore que não sou e nunca fui. Sei disso pois me envergonha a tentação de roubar para mim a dignidade e sobrevida de uma árvore que sofreu bem mais que eu mesmo. Por respeito, ou talvez por medo, a deixo em paz e busco de novo o calor do sol. Diante de mim uma árvore insuspeita estende-se em todas as direções. Seu troco subdivide-se em três, logo acima da terra, como se não soubesse bem onde está o sol. Um dos três troncos parece ter se quebrado há algum tempo, apenas palmos depois do chão. Seus restos jazem no solo. Sobre a madeira decadente crescem cogumelos e em seu oco vivem os bichos. Os troncos sobreviventes se estendem desajeitados ocupando os vãos que podem. Alguns alcançam o dossel do bosque, banhados pelo sol direto da manhã e da tarde. Outros precisam se contentar com os fragmentos de raios sob as copas de maiores semelhantes. Os demais, por fim, que perderam-se na busca ou foram sobrepujados pelos ramos das vizinhas, definham sem florescer. É um gesto econômico o que essa criatura desempenha a realizar incompleta sua forma imanente onde a circunstância permite enquanto deixa morrer, com desapego, seus planos frustrados de ser. Os restos de seus acidentes alimentam as mudas que, em sua falta de imponência, permite brotar no piso ao redor. Suas raízes, estatura e maturidade asseguram-lhe lugar no bosque e sua vida não parece ameaçada. Por outro lado, a idade implacável da floresta não lhe concede espaço mais privilegiado. Essa árvore sou eu. Devo reconhecer o que pude e o que não pude. Ser a árvore que sou, tomar o sol que alcanço, abandonar os galhos que só encontraram escuridão, viver sob a sombra de outros e doar meus fracassos à vida que brota aos meus pés.

Meu cão me chama para dizer que não somos árvores e devemos andar, como fazem os animais.

Acordo com um galho que flutua ao meu lado. A terra está próxima. Isso não quer dizer que eu possa encontrá-la, saber para que lado está, ou vencer a força da correnteza se ela quiser me afastar da costa, mas sua presença e anunciação já bastam para que a eterna deriva se encontre em algum lugar melhor que lugar nenhum.

Daniel Mattos

Daniel Mattos

Nasceu em Petrópolis, em julho de 1975 e recebeu o nome de Daniel Vidal Mattos. Desde então está em busca de respostas sobre o que é ser Daniel Vidal Mattos, nascido em Petrópolis em julho de 1975. Não se parece com a foto aqui publicada.

Deixe uma resposta