Estrada dos Ipês
Reunida na entrada da trilha das maritacas, a família se despediu de Chinelo. O cão, que por cinco anos foi motivo de alegria e objeto de afeto de todos, recebeu o nome por sua predileção por brincar, destroçar ou enterrar os chinelos dos desavisados. Agora era ele quem estava enterrado na entrada da trilha que gostava de explorar. A tristeza das crianças era indescritível. Em Ênio, o pai, a tristeza ganhou um componente a mais, próprio dos homens adultos: revolta.
Chinelo foi vítima da curva leve que havia na Estrada dos Ipês logo antes da entrada do número 496, propriedade da família. Curva o bastante para que os veículos não vissem quem faz a travessia ou anda pela margem da via. Mas leve o bastante para que ninguém tirasse o pé do acelerador ao contorná-la. Os sustos vividos nos últimos tempos por causa dos motoristas imprudentes e ansiosos, com seus pés pesados no pedal, haviam se tornado uma fonte constante de preocupação para os moradores daquele outrora pacato conjunto de propriedades a meio caminho entre a cidade e o distrito mais próximo. Naquela tarde de domingo, chinelo atravessou a estrada como sempre fazia quando alguma cadela na vizinhança entrava no cio. Acossado por machos rivais, foi colhido por um carro que vinha em alta velocidade pela curva suave sem vê-lo e não conseguiu parar ou desviar-se. Ninguém viu o carro. Apenas ouviram o agudo estridente dos pneus queimando o asfalto novo, soando o alarme trágico.
Taciturno, Ênio sentou-se na varanda bebericando um cálice de licor de jambo, em vã tentativa de amaciar o coração pesado. Sentia-se violado e impotente, incapaz de proteger sua família. Pensou em fazer uma cerca mais fechada e trocar o portão de ripas espaçadas por outro, mais alto e sólido. Essa ideia lhe causou sentimento de aversão. Prender as crianças em casa, fechar-se aos vizinhos e amigos, entregar a rua definitivamente aos desconhecidos, perder o direito de travessia, cedendo-o integralmente ao uso impessoal de estranhos. Seu avô se reviraria no túmulo.
Ênio herdou do pai o combate ao tráfego passante na estrada dos Ipês. Tinha memória vívida da irritação do homem com o aumento na frequência de veículos na estrada, estimulada pelo crescimento dos distritos com mais e mais veranistas. Naquele tempo, porém, não era o perigo de acidentes que mobilizava os moradores. A estrada era de terra, repleta de buracos e costelas-de-vaca que faziam os carros passarem em baixa velocidade. O problema era a poeira levantada, que se acumulava sobre as folhagens da horta e se acumulava nos móveis da casa.
Para Ênio, desde cedo, ficava a impressão de que seu pai e os vizinhos se incomodavam mesmo em ver seu santuário usado como passagem para pessoas que não pertenciam ao lugar. Era compreensível, para uma geração que acostumou-se a jogar bola de gude no meio da estrada, partidas inteiras, antes que surgisse um carro ou carroça. Quando aparecia alguém, era sempre algum conhecido que, com vagar, não deixava de trocar algumas palavras ou ao menos um aceno.
Se o pai viu as brincadeiras na estrada definitivamente proibidas pelas mães mais cautelosas e os carros que passavam levantando poeira sem pagar nem ao menos o pedágio de um aceno simpático, Ênio por sua vez testemunhou o asfaltamento da estrada ser comemorado pelo povo local. Não havia como discordar completamente. Afinal, se a Estrada dos Ipês havia de tornar-se passagem para um trânsito constante de veículos, que ao menos trouxesse conforto e acabasse de vez com as nuvens de poeira na época da estiagem. O que não puderam prever foi a ameaça trazida pela velocidade da vida urbana.
Ênio passou aquela noite num quebra-cabeças com peças feitas de memórias e hipóteses, traumas e medos. Precisava encontrar alguma solução para aquele dilema ou algum meio de vencer a impossível batalha contra a marcha do progresso que havia chegado literalmente à porta de sua casa reclamando a vida do avatar da família. Sua esposa interrompeu a espiral, apelando para que ele fosse dormir. Quem sabe uma noite de sono ajudaria a ver de forma menos angustiosa aquele cenário. Vencido pela sabedoria dela e pelo próprio cansaço, dormiu um sono pesado e contrito até o meio da madrugada, quando a bexiga o devolveu ao quebra-cabeças incompleto de sua missão na terra.
Olhando para o forro do teto, Ênio lembrou-se da engenhosidade do pai ao lidar com a poeira que lhe destruía as chicórias. Uma extensão e desvio dos espargidores de rega da horta, estendendo-os até a beira da estrada ao longo de toda a divisa do terreno deu conta de manter a terra úmida na superfície da pista, reduzindo em muito o problema. A solução trazia ainda um bônus: os motoristas desavisados, que passavam de janelas abertas podiam ser sorteados para receber um esguicho de água fria dentro de seus carros. Ênio e os outros meninos e meninas sentavam-se à beira da sebe, sob a sombra dos jatobás e esperavam aquele momento de sincronia que, quando ocorria, era comemorado com gritos e risadas tão gostosos e autênticos que eram capazes de neutralizar a irritação dos motoristas e passageiros encharcados, que acabavam rindo também.
Essa lembrança provocou uma espécie de explosão dentro do crânio de Ênio, como se uma bola de pinball tivesse sido disparada, ricocheteando e ativando sons e luzes coloridas em sua mente. Ele e os vizinhos haviam desperdiçado tempo e esforços tentando convencer a prefeitura a colocar naquele trecho algum tipo de lombada ou quebra-molas, sem sucesso. A Estrada do Ipês não tinha movimento que justificasse a iniciativa e nunca havia ocorrido um acidente ali até o atropelamento de Chinelo. A morte do seu vira-latas certamente não sensibilizaria as autoridades. O máximo que haviam conseguido até então tinha sido a colocação de placas indicando o limite de velocidade, fixado em 50km/h. No entanto, o aviso era sempre ignorado. Naquele trecho relativamente reto de uma estrada estreita e sinuosa em quase toda sua extensão, os motoristas não perderiam a oportunidade de ganhar mais velocidade. O poder público é assim, pensou, não fazem nada ali porque não há nada a ganhar. Cogitou fazer buracos no asfalto ou coisa que valha, mas lhe pareceu uma solução de vândalo. Sua ação precisava ser animada pela mesma engenhosidade dos espargidores de outrora. Não podia se conformar que, em outros locais, de forma completamente arbitrária, instalam-se radares de velocidade. Claro, pois radares fazem dinheiro e motoristas só temem acidentes em seus bolsos. Hoje em dia o sujeito dirige olhando a tela do GPS, concentrado em antever a fiscalização eletrônica…
Era isso! Ênio acabava de descobrir seu espargidor, um jeito próprio de regar novamente a estrada dos Ipês. Levantou-se e foi fuçar o depósito ao lado da casa. Não foi difícil encontrar uma velha câmera de segurança, fruto de uma temporada paranóica, graças a alguns arrombamentos ocorridos na região. No fim descobriram que o culpado era um menino, com alguma deficiência mental, que havia ficado sem a devida supervisão depois que sua avó envelheceu e já não conseguia tomar conta dele. A paranóia transformou-se em dó e uma mobilização para encontrar solução para o rapaz e a idosa. Hoje moram na cidade com algum parente. Ficou a câmera largada, que viria bem a calhar. Pegou seu celular e o da esposa, apanhou as chaves do carro. À primeira luz da manhã, estava transitando na caminhonete de um lado pro outro da estrada sob o olhar inquisitivo de quem acordava para ir trabalhar.
Semanas depois um carro que fazia uma entrega vinha em alta velocidade pela estrada dos Ipês. O motorista não conhecia a área e seguia o caminho proposto pelo aplicativo, o que não o impedia de tocar o carro o mais rápido que podia, com uma pressa que ele mesmo teria dificuldade de justificar. Além do GPS, também mantinha ligado o aplicativo especializado em evitar radares de velocidade, o que só o fazia ficar duas vezes mais distraído, com os olhos e a atenção divididos entre a estrada e a tela do celular.
Ao aproximar-se da curva leve à direita na estrada dos Ipês, o aplicativo anti-multas apitou, avisando que um pardal se aproximava. O homem mal pôde crer que numa estradinha de nada como aquela pudessem ter instalado um radar de velocidade. Aliviou o pé à procura da armadilha eletrônica. Logo antes da curva, ao lado de uma placa indicativa do limite de velocidade, viu o pequeno poste com a câmera no topo. Pisou no freio até estar dentro dos 50km/h exigidos, franzindo a testa em reprovação por ser obrigado a arrastar-se por aquela curva tão suave, como uma lesma paralítica. Tocando a tela do celular, confirmou para o aplicativo a presença de um radar ali, o que ajudaria outros motoristas a não perder dinheiro pro governo. Foi quando a voz no aplicativo falou que seu destino estava logo à direita. Como encontrou o portão aberto, dobrou na entrada e seguiu até o fundo da propriedade pela estradinha de brita, passando por crianças que brincavam e pedalavam suas pequeninas bicicletas até encontrar Ênio regando e cuidando da horta com sua esposa.
Ao ver o homem da entrega chegar, Ênio logo chamou as crianças, que correram para a traseira do carro. Juntos desembarcaram os três filhotes de vira-latas, magrelos e brincalhões que logo se espalharam pelo quintal. Após um copo de água gelada e um pouco de conversa amena, o homem se despediu perguntando se queriam que ele fechasse a porteira ao passar por ela. Ênio lhe disse que não precisava. Ali os portões ficavam sempre abertos.