Sandman versus Harry Potter – Um guia para diferenciar original de cópia.
Após anos de espera, os fãs de Sandman finalmente podem se deleitar (ou decepcionar) com uma série baseada na obra-prima dos quadrinhos de autoria do consagrado escritor britânico Neil Gaiman. Aproveito a ocasião para revisitar uma velha polêmica envolvendo o trabalho dele e de ninguém menos que J.K. Rowling para endereçar um tema eterno na indústria criativa: originalidade e plágio.
Recentemente me deparei no Twitter com um assunto que sempre me intrigou: as similaridades entre a série de livros Harry Potter e uma minissérie em quadrinhos intitulada “Os Livros da Magia”, escrita por Neil Gaiman sete anos antes da publicação do primeiro livro de J. K. Rowling.
Descobri que não sou o único intrigado pelas muitas coincidências entre a série de livros mais vendida de todos os tempos (mais de 500 milhões de cópias) e essa história em quadrinhos de um autor que na época já era bem-sucedido, mas ainda estava longe de se tornar o verdadeiro rockstar que é hoje.
Em 1990, a DC Comics publicou a minissérie “Os Livros da Magia”, contando a jornada de um garoto chamado Timothy Hunter enquanto desenvolve seu potencial para tornar-se o maior mago do mundo. O primeiro livro de Harry Potter, por sua vez, foi publicado em 1997.
As similaridades entre as histórias incluem o perfil do protagonista, um garoto de cerca de 12 anos de idade com óculos de lentes arredondadas e uma cicatriz na testa vivendo em uma família disfuncional de Londres, a descoberta de seu potencial ao ser visitado inesperadamente por magos e o fato do menino ser presenteado por um deles com uma coruja de estimação.
Coincidências existem, mas são raras e as que acabamos de enumerar parecem exceder a dúvida razoável. É possível que duas composições quase idênticas de diferentes elementos criativos sejam ambas originais? J K Rowling plagiou Neil Gaiman?
Não falta quem acuse Rowling de plagiar não apenas a obra de Gaiman, mas também outras fontes. Vários processos por direitos autorais foram movidos contra a autora e sua editora ao longo dos anos, movidas quase sempre por escritores pouco conhecidos (ou completamente desconhecidos) e resultaram em derrotas custosas aos reclamantes.
Nada disso impediu que, volta meia, reemergissem acusações de que Harry seria uma imitação deliberada de Timothy Hunter. A hipótese inclui até mesmo elementos de teoria conspiratória, com rumores de que Neil Gaiman teria mesmo processado J K Rowling se a Warner (detentora dos direitos audiovisuais sobre a franquia Harry Potter) não tivesse cooptado o autor com um generoso contrato sobre outras de suas criações.
A publicação no Twitter a que me referi no começo é uma resposta de Neil Gaiman a uma postagem que voltava ao tema e especulava sobre a possibilidade de Gaiman ter processado J K Rowling por plágio. Neil responde que nunca houve processo e que nunca haveria algum, algo que aparentemente já precisou reiterar diversas vezes ao longo dos anos. Gaiman já havia escrito sobre o assunto em seu blog em 2008 e de novo em sua conta no Tumblr em 2021, ocasiões em que expôs as razões pelas quais pensa assim.
“Eu certamente não acredito que Rowling tenha roubado Os Livros da Magia. Duvido que ela tivesse lido e não importaria se ela tivesse: eu não fui o primeiro escritor a criar um jovem mago com potencial, nem Rowling foi a primeira a mandar um para a escola. Ficção de gênero, como Terry Pratchett apontou, é um ensopado. Você tira coisas da panela, você coloca coisas de volta e o ensopado borbulha. Não são as ideias, mas o que você faz com elas que importa.”
Não é inesperado que Gaiman demonstre esse nível de cortesia profissional em relação a Rowling. O histórico de suas falas públicas comprova que o homem é um verdadeiro gentleman. Mas a questão trazida por ele vai muito além disso, até o cerne do ofício criativo e do modelo jurídico e econômico da indústria do entretenimento.
Ao dizer que não importaria se ela tivesse lido a minissérie, Neil descarta a hipótese de plágio mesmo que a fonte tivesse sido seu trabalho. Em outra ocasião, o autor soa mesmo irônico a respeito, ao dizer que “Rowling é esperta o suficiente para, caso tivesse plagiado Tim Hunter e os Livros da Magia, mudar muito mais coisas. Ele pareceria diferente, corujas teriam se tornado águias etc.”
Pode-se depreender aí que Gaiman não descarta a hipótese da transposição desses elementos em Harry Potter, já que não os considera suficientes para caracterizar plágio. Ao contrário, considera que um verdadeiro plagiador procuraria esconder sua trapaça modificando justamente esses elementos superficiais.
Isso acontece porque o autor entende que aqueles elementos coincidentes não são originais dos Livros da Magia. Gaiman não considera que os autores são proprietários dos elementos individuais (as ideias) que compõem suas obras, mas apenas do arranjo completo e acabado desses elementos (o que você faz com elas). A franquia Harry Potter se caracteriza justamente por fazer uma mistura eficaz de centenas de arquétipos, elementos estilísticos e referências indisfarçadas ao universo da ficção fantástica.
Gaiman também é um exímio alquimista de referências e a postura do criador de Sandman, Coraline e outros clássicos é mais generosa do que a demonstrada por Rowling. A escritora processou um autor americano, Steve Vander Ark, por este ter publicado um dicionário sobre o universo de Harry Potter. Perguntado sobre o caso, Gaiman afirmou na época que, no lugar de Rowling, “provavelmente ficaria lisonjeado, mas isso obviamente não é como J.K. Rowling se sente. Não posso me imaginar tentando impedir qualquer um dos livros não autorizados que saíram sobre coisas que criei ao longo dos anos.”
Em 2007, Rowling também ameaçou processar Norman Lippert, um programador que escreveu, junto com a esposa e os filhos, uma fanfic online tendo o filho de Harry Potter como protagonista. Depois de ler o texto, porém, a autora se arrependeu e declarou apoiar a iniciativa do fã.
O ceticismo e tolerância prescritos por Gaiman são corroborados pela própria estrutura dos direitos autorais na maioria dos países. Ideias não são protegidas por direitos autorais, apenas obras o são. Uma ideia precisa ser desenvolvida para ganhar o status de propriedade intelectual. Isso quer dizer que a ideia precisa se concretizar em alguma forma composta, em um suporte. No mínimo, precisa ser posta no papel de forma detalhada. Não é por acaso. Obras de arte são objetos culturais. Sua matéria prima é disponibilizada pela decomposição de outros objetos culturais em peças fundamentais. Depois, as peças são recompostas de outra forma resultando em outra obra, com sentido próprio. O plágio só se caracteriza se há cópia do arranjo todo ou de partes significativas dessas composições. Os elementos em si são commodities culturais. Estão por aí, circulando livremente.
Para absorver essa característica intrínseca da indústria cultural, as leis de direitos autorais incluem o que é chamado na legislação americana de “Fair Use”. Trata-se de uma previsão legal que permite o uso de criações de terceiros, como textos, sons e imagens, sem a necessidade de autorização prévia ou pagamento. A Lei de Direitos Autorais brasileira tem um mecanismo parecido, a chamada “limitação aos direitos autorais” também conhecida por aqui como “usos livres”. Mas o tratamento da questão aqui e lá tem diferenças.
O “Fair Use” dos EUA é tratado como um princípio e não há definição ou detalhamento sobre como atribui-lo. Já a lei Brasileira enumera as poucas situações em que o uso livre pode ser aplicado, como citações em textos acadêmicos, ou em textos de crítica, além do que é genericamente descrito como “uso de pequenos trechos”, contanto que o trecho não represente “o núcleo” da obra (outra coisa difícil de definir), nem gere prejuízo ao autor. O tamanho do trecho e o possível prejuízo ao detentor dos direitos são fatores também considerados na jurisprudência americana, que acrescenta a propriedade “transformativa” da nova criação (diferenciando plágio de paráfrase ou paródia, por exemplo). No fim das contas é a cultura e tradição jurídica de cada país que vai influenciar um ambiente mais ou menos flexível para o uso de elementos criativos já existentes. O próprio Gaiman diz que “Fair Use é uma dessas coisas, como pornografia, que só sabemos que é quando vemos.” De toda forma, a legislação tenta equilibrar, tento na teoria quanto na prática, a proteção aos direitos de propriedade intelectual e a liberdade intrinsecamente necessária no ambiente cultural para a apropriação e transformação de expressões alheias.
No caso específico de Timothy Hunter e Harry Potter a teoria conspiratória ignora fatos fundamentais dessa dinâmica, como a diferença entre autoria e propriedade intelectual. Pouco depois que a Warner adquiriu os direitos de adaptação de Potter para o cinema, o estúdio fez também um contrato com Gaiman pelos diretos de “Sabrina”. Segundo a teoria conspiracionista, isso teria sido um subterfúgio para neutralizar sua motivação para processá-los pelo suposto plágio. O problema com essa fantasia é que, mesmo antes da existência de Harry Potter, a Warner já era controladora da DC Comics e, portanto, dos direitos de propriedade intelectual sobre todo o conteúdo em “Os Livros da Magia”. As fantasias conspiracionistas desconsideram essa realidade da indústria. Gaiman jamais teve controle comercial sobre Sandman ou dos Livros da Magia. Ambos são trabalhos que ele fez sob contrato comissionado, típico em modelos de negócio como da DC. A editora é, portanto, a única parte que supostamente teria motivos ou meios para acusar Rowling de infringir seus direitos de propriedade intelectual.
Criadores parecem mais conscientes da fluidez de conceitos como autoria, originalidade e propriedade do que mesmo os gestores das empresas que os contratam. Ao contrário do que se poderia esperar, Gaiman narra sua frustração ao saber que “a DC Comics manteve uma tiragem inteira de Os Livros da Magia no armazém por seis meses por ordem de alguém na Warner Brothers, porque eles tinham um filme de Harry Potter saindo e estavam aterrorizados com… alguma coisa, eu nunca tinha certeza do quê. Mas eu não acredito que JKR tinha a menor ideia que estava acontecendo”.
Assim, não faz sentido pressupor que, em razão de simples antecedência cronológica, “Os Livros da Magia” tivesse primazia sobre méritos econômicos usufruídos por “Harry Potter” ou que Gaiman tenha sido injustiçado de alguma forma. Harry Potter é um protagonista de perfil muito semelhante ao Timothy Hunter de Gaiman, mas o sucesso do livro de J K Rowling se deve também a características que lhe são próprias e que a minissérie da DC nunca teve. Subtraído do foco excessivo nas semelhanças, o fator esquecido consiste nas significativas diferenças entre os dois.
“Os Livros da Magia” foi projetada pela DC como uma forma de reapresentar ao público personagens com poderes mágicos do universo DC. Na minissérie, Neil Gaiman usa Timothy Hunter como eixo em torno do qual fará desfilar uma galeria de propriedades intelectuais pré-existentes que inclui Constantine, Spectre, Ametista, Zatanna e Zatara, Senhor Destino, Doutor Oculto e até uma aparição de Deadman. O garoto Tim visita passado, presente e futuro em diversos reinos numa solução criativa para cumprir o itinerário encomendado pela DC. Trata-se, portanto, de uma estrutura bastante diferente da série de livros de J K Rowling, que recicla os estereótipos do gênero para construir um mundo coerente e desenvolve um grande conjunto de personagens próprios ao longo de sete volumes.
As especulações do público leigo sobre autoria padecem geralmente do viés de disponibilidade, um atalho cognitivo que limita o raciocínio a exemplos imediatos, ignorando os demais. Ao ver similaridades entre Harry Potter e Os Livros da Magia, o sujeito pensa que um deve ser original e o outro só pode ser cópia. Afinal não podem existir dois originais. Pois bem, mas podem existir duas cópias. Gaiman esclarece que é mais ou menos esse o caso quando se trata dessas duas obras. Tanto uma como outra bebem em referências que já existiam antes de ambas. Algumas obras predecessoras são citadas diretamente por Gaiman, como “A Espada na Pedra”, de T. H. White (1938); “Terra-Mar”, de Ursula K. Le Guin (1968); “A Pior das Bruxas”, de Jill Murphy (1974). As raízes mais profundas dessas referências bebem nas obras de Tolkien ou mesmo nas lendas do Rei Arthur.
Múltiplas variações sobre o mesmo tema são algo inerente à vida cultural e ao fazer artístico. Obras de gênero são criações coletivas e amadurecem ao longo do tempo por meio de repetidas iterações através dos métodos de paródia, citação, paráfrase, alusão e outras formas de intertextualidade. Artistas profissionais têm plena consciência disso. Colocam-se a serviço do gênero ao mesmo tempo em que se servem dos congêneres livremente. Ainda que a imprecisão das fronteiras de direito de propriedade seja inconveniente em alguns momentos, as bordas diluídas da autoria são o óleo lubrificante na máquina cultural contemporânea. Trata-se, portanto, de uma regra tácita do universo criativo, talvez mais bem compreendida pelos próprios artistas do que pelos departamentos jurídicos.
Aqueles que ignoram essas regras tácitas, diante das dificuldades e percalços na busca por uma carreira criativa, podem desenvolver algum grau de paranoia. Outros casos, motivados por oportunismo, produzem personagem litigantes que parecem dedicar mais tempo a audiências e reuniões com advogados do que ao trabalho em suas oficinas, estúdios e ateliês. Embora a criação seja um negócio (ou talvez por isso mesmo) o artista deve assumir o risco de ver outro autor ocupar o espaço de mercado com uma versão daquele mesmo conjunto de ideias e referências. É um acontecimento banal na multiplicidade do mundo contemporâneo. Não deve ser considerado um fracasso, mas ao contrário, como um sinal de sintonia com o zeitgeist.
É compreensível, entretanto, que num ambiente tão cruel e assimétrico como é a indústria do entretenimento, o ressentimento fermente na forma de disputas por direitos autorais. O aspirante anônimo e inexperiente, sentindo-se talvez condenado às margens na indústria, pode acabar flertando com a ideia de litigar por direitos sobre ideias pontuais em suas modestas criações, legadas à invisibilidade enquanto outros parecem usufruir do sucesso com ideias muito parecidas. O divórcio entre ideias e resultados, assim como todo o emaranhado de sorte, talento e trabalho duro que está no meio, servem de adubo para as ervas daninhas da neurose. Enquanto isso, o autor bem-sucedido não encontrará motivação para litigar. Entre outras razões, este sabe da importância que a reputação e os bons relacionamentos têm para a manutenção da posição em que a fortuna o colocou. Além disso, o artista reconhecido tem seus próprios meios de recompensa e financiamento.
Não podemos afirmar tampouco que um reclamante não tinha razão apenas por ter perdido um processo judicial, especialmente num tema pantanoso como direitos autorais e ainda mais quando o oponente no tribunal é um titã global armado com todos os meios para garantir a maximização de seus poderes sobre propriedade intelectual. Mas, por essa mesma razão, é preciso admitir que é ingenuidade começar uma briga judicial por propriedade intelectual contra empresas do porte de uma Warner ou Scholastic Press.
Da polêmica revisitada, fica a lição de que nenhuma criação está isenta da possibilidade de ser reciclada. Nem mesmo Harry Potter. Perguntado sobre se o jovem bruxo de Hogwarts teria ocupado todo o espaço disponível na cultura audiovisual para garotos mágicos e condenado Timothy Hunter ao esquecimento, Neil responde: “Li alguns roteiros fantásticos para Livros da Magia, e alguns não tão fantásticos. Nunca foi uma história de escola, então não acho que Harry Potter impediria um filme ou série de TV de ser feito, se alguém realmente quisesse fazer um. E provavelmente, cedo ou tarde, farão.”
No fim das conta, portanto, valem a palavras do autor: “Não são as ideias, mas o que você faz com elas, que importa.”