Silêncio!

Silêncio!
Foto: Kristina Flour/Unsplash

O silêncio e o repouso imperavam no apartamento. Ninguém em casa.  A televisão, o rádio, o despertador, a guitarra em cima do armário, o ar condicionado, a impressora. Tudo desligado.

Uma prateleira de livros e porta-retratos, uma torneira, a válvula da descarga, o vaso sanitário, o chuveiro e o barbeador sobre a pia. Quietos.

Um liquidificafor, o fogão, exaustor, batedeira, microondas. Uma máquina de furar pendurada, um balde vazio, a máquina de lavar, o aquecedor a gás. Um Mensageiro dos Ventos pendurado na janela, um vaso de planta, um aparelho de som. Calma.

O silêncio se rompe com o ruído da chave estalando na fechadura da porta de entrada.  Após mais um dia duro de trabalho, Pedro entra em casa com as compras e tira a máscara.

Ele acende a luz e, assim que bate a porta atrás de si, escuta três batidas surdas vindas não se sabe de onde.

“Toc, Toc, Toc”.

Pedro torna a enfiar a chave na porta, desta vez para fechá-la.

“Toc, Toc, Toc”.

Agora estava mais claro. Era o vizinho de baixo.

Sem se importar muito com aquilo, Pedro coloca os pacotes numa mesa.

“Toc, Toc, Toc”.

Com certeza era o vizinho. Que diabo era aquilo? Estaria pregando alguma coisa, àquela hora da noite?

Pedro caminha até a cozinha e abre a geladeira para pegar uma garrafa de água.  Sem querer, ele deixa um copo de vidro cair no chão, que se despedaça em mil pedaços.

“Toc, Toc, Toc!”

Enquanto recolhe os cacos, provocando um tilintar desagradável, Pedro ouve novas batidas, cada vez mais rápidas e furiosas.  Assim que ele joga os cacos na lixeira, mais batidas. Que merda era aquela? Havia uma relação de causa e efeito entre seus próprios ruídos e a reação do vizinho.

Pedro volta para a sala atento, disposto a realizar um teste: tomando cuidado para não produzir ruídos involuntários, senta-se numa poltrona próxima à mesinha de canto, onde repousam três pequenas estátuas dos Macaquinhos Sábios.  Ele pega o macaco que cobre a boca e bate com a peça levemente sobre a mesa.

“Toc”.

Pedro bate um pouco mais forte com a estátua.

“Toc! Toc!”

Pedro espanca a mesa com o macaquinho.  O vizinho reage.

“Toc! Toc! Toc!”

Intrigado, Pedro observa a estátua do macaquinho que cobre os ouvidos enquanto aguarda as próximas batidas. Ele corre até um canto da cozinha e pega uma vassoura.  Sem dar tempo para o vizinho, devolve as pancadas no chão, deixando clara sua irritação.  O vizinho replica.  Pedro triplica, o vizinho quadruplica. Um duelo de vassouradas se inicia. Com raiva, Pedro não para de espancar o chão, catártico.  O vizinho aguarda pacientemente, e assim que Pedro se cansa, volta à carga.

“Toc, Toc, Toc”.

Pedro explode de raiva. Vencido pela insistência, ele joga a vassoura de lado, que cai no chão com um ruído abafado.

“Toc, Toc, Toc”.

Desolado, Pedro caminha para o quarto, acompanhado por inúmeras batidas do vizinho, a cada passo que dá. Ele tira a roupa e atira-se na cama.  Silêncio.

Imóvel, Pedro aguarda a investida do vizinho a qualquer momento, a qualquer ruído.  Vencido pelo cansaço, adormece.  Mas, ao som do primeiro ronco, já de olhos cerrados, o vizinho assinala.

“Toc, Toc, Toc”.

Pedro acorda sobressaltado. Tenta dormir novamente. Novo ronco, nova batida, novo acordar. Aquela situação insana tinha levado Pedro a um estado de vigília paranoica, seus olhos já esbugalhados de sono. Ele pega o telefone e pensa em fazer uma reclamação. Mas para quem iria ligar? Quem poderia lhe ajudar? E reclamar do quê?  Do silêncio do vizinho? 

Desamparado, Pedro se rende, levantando-se com extremo cuidado. Pé ante pé, ele caminha em direção à TV, que lhe parece a única opção para suportar aquele martírio. Ao primeiro passo, silencioso, nada. Pedro dá outro passo, temendo pisar um pouco mais firme no chão. Silêncio. Ele tenta um terceiro passo, e a madeira do piso range levemente.

“Toc, Toc, Toc”.

O rosto de Pedro se contrai, mas ele arrisca um novo passo. O assoalho volta a ranger.

“Toc, Toc, Toc”.

Sem coragem de mover os pés novamente, Pedro se estica até o limite e quase se desequilibra ao tentar enfiar o plug de um fone de ouvido no conector da televisão. Com todo o cuidado, ele se acomoda numa poltrona ao lado da TV e alcança lentamente com as mãos o controle remoto. 

A TV emite um leve assobio antes de se iluminar com as imagens. Um som quase imperceptível, um ruído eletromagnético.

“Toc, Toc, Toc”.

Em vertigem, Pedro quase desmaia.  Mas, repentinamente, surta.

Ele agora tem uma expressão demoníaca no rosto, e pega uma bengala decorativa. Sem dar um passo, puxa o abajur de pé ao lado da TV, que se estatela no chão com um estrondo.

“Toc, Toc, Toc!”

Pedro sorri sadicamente. Com um golpe seco, ele quebra o apoio de parede de uma prateleira cheia.  Tudo despenca ruidosamente.

“Toc, Toc, Toc!”

Pedro ri novamente. O jogo tinha virado. Ele ergue um vaso de plantas, se concentra no silêncio e larga o objeto ao chão. O vaso se despedaça.

“Toc, Toc, Toc! Toc, Toc, Toc!”

Pedro gargalha. Ele liga o aparelho de som e coloca uma música no volume máximo. Despluga o fone da televisão, dispara o despertador, liga o ar condicionado, o computador e a impressora. O vizinho esmurra o chão ininterruptamente. Pedro deixa o quarto e parte para o banheiro.

Pedro abre a torneira, liga o chuveiro e o barbeador.  Antes de sair, aciona a descarga. Vai para a sala. O vizinho continua reagindo com as batidas. Pedro derruba um chapeleiro, outro vaso de plantas e dá um tapa no Mensageiro dos Ventos pendurado na porta da varanda. Vai para a cozinha, liga o liquidificador. Coloca uma chaleira para ferver água e uma panela de pressão no fogão. Liga o exaustor, uma batedeira e o microondas. As batidas do vizinho continuam insistentes, mas já se misturam à barulheira. Pedro vai para a área de serviço, liga a máquina de lavar e o aquecedor de água.

De volta ao quarto, Pedro cata sua velha guitarra, esquecida em cima do armário. No caminho, passa pelo banheiro e aciona novamente a descarga. Ele arrasta um amplificador para a sala, conecta o instrumento e o aproxima da caixa de som, provocando uma microfonia aguda.

Pedro corre para a área de serviço, pega um balde de água e se dirige para o banheiro, onde o coloca emborcado sob a ducha do chuveiro. Antes de sair, aciona a descarga.

Pedro aponta um ventilador para o Mensageiro dos Ventos, que tinha parado de tilintar. Resolve quebrar a descarga.

Usando o celular, Pedro faz uma ligação para o telefone fixo, e não atende.

O vizinho continua reagindo, mas as batidas agora já não parecem tão convictas. De ininterruptas passam a intermitentes, cansadas.

A panela de pressão e a chaleira começam a apitar. A lavadora de roupas está funcionando, mas Pedro ainda não está satisfeito. Experimenta jogar um garfo dentro da máquina. Gosta do que ouve. Joga uma panela, e o barulho aumenta. Melhor ainda com todo o jogo de facas.

Pedro já está quase satisfeito com todo aquele pandemônio quando percebe a furadeira pendurada na parede. Na sala, ele usa a ferramenta para sensibilizar as cordas da guitarra com a máquina ligada, provocando uma barulheira infernal. Agora sim.

Na varanda, Pedro rege a sua sinfonia do caos.

“Toc…”

Da janela do andar de baixo, uma vassoura é arremessada ao vento.

Marcial Renato

Marcial Renato

Marido da Karin, a mulher mais bonita que já conheci na vida, pai da Ravena (super poderosa), do Henzo (a pronúncia é "Renzo", como o lutador) e da Laura (de olhos verdes). Filho da Alzira, a mulher mais forte do mundo, e do Paulo Roberto, o cara mais maneiro de todos os tempos. Já trabalhei como produtor de TV, Cinema e Internet, fui professor de Comunicação Social e hoje sou servidor de carreira da Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Tenho um mestrado em Literatura e graduação em Publicidade e Propaganda, ambos na UFRJ. Em 2012, escrevi, produzi e dirigi o longa-metragem "Dia de Preto", com Daniel Mattos e Marcos Felipe Delfino, premiado em diversos festivais no Brasil e no mundo. Também sou autor dos livros "Rituais de Casamento", de 2015, junto com a Karin, e "Asgaehart: as invasões bárbaras", lançado em 2018. Duas vezes por ano jogo na lateral direita do time dos nascidos na década de 70 do Vale do Rio Grande (7X). Também gosto de pegar onda no verão, e nas horas vagas escrevo aqui no site da Maxie.

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