Um Dinossauro no Metaverso

Um Dinossauro no Metaverso

Um console com base de madeira e uma placa metálica acima. Dois pequenos botões para escolha de modalidade, três pequenas alavancas e dois botões maiores que serviam como controle. Pioneiro no mercado de jogos eletrônicos no Brasil, o Telejogo foi lançado em 1977 pela Ford-Philco e imediatamente ganhou espaço nos lares de classe média. Com gráfico ainda rudimentar, oferecia três modalidades: Paredão, Tênis e Futebol. As duas barras laterais que defendiam e afastavam a bola – um ponto quadrado que se movimentava no centro da tela, de um lado para o outro, numa velocidade cada vez maior – eram o suprassumo da tecnologia. Eu nasci no meio dessa inovação e foi justamente esse o meu primeiro contato com um videogame, nas casas de uma tia e de amigos com condições financeiras suficientes
para dispor de tal privilégio.

Telejogo – lançado em 1977 pela Ford-Philco

O sucesso do console levou a Ford-Philco a lançar outras variações, até ser desbancada no mercado brasileiro pelo novo passo da evolução: o Atari 2600. Aportando nas terras tupiniquins em 1983, o videogame se tornou coqueluche entre as crianças pelo resto da década, tendo como concorrentes o Odyssey, lançado pela Philips, o Dynavision, da Dynacon, e o Gemini, da Coleco. Como bom filho da burguesia, fui tomado pela febre, entre Enduros, Pitfalls, River Raids. O império da Atari durou até o fim da década, quando surgiu um novo avanço gráfico e de jogabilidade no mundo dos 8 bits. A denominada terceira geração chegou no Brasil através do Master System, uma aposta da SEGA, e do Phantom System, console brasileiro da Gradiente que copiava o Nintendo Entertainment System (NES). Nova coqueluche, mais variedade de jogos, que fui acompanhando até certo ponto.

Pitfall, jogo da Activision para o Atari 2600.

Com o caminhar da década seguinte, o menino foi crescendo, dividindo-se entre outros interesses e se perdendo no rápido progresso que veio a seguir. Mega Drive, Super Nintendo, Nintendo 64, Playstation, Xbox, Wii, os consoles foram sendo otimizados e me tornaram, a cada dia, mais obsoleto. Dos 8 bits passamos pelos 256, pulamos para uma nona geração, com controles funcionais que substituem os próprios consoles. Realidades imersivas com narrativas cada vez mais elaboradas. Enquanto parte dos amigos se renovavam, trocando descobertas e atualizações, minha falta de devoção e de posses foram me afastando do futuro.

Imagem de https://www.gamez.io/blog/the-evolution-of-video-game-consoles-48-years-in-the-making

Foi já perto da meia idade, como um roteirista em formação, que descobri o quanto não ter acompanhado o desenrolar dessa história me deixou de fora de uma fatia importante do mercado audiovisual. Quem são esses moços mal saídos dos cueiros que aparecem nas redes sociais já se dizendo realizadores do setor? E por que muitos deles só falam de games? A curiosidade pelos jovens concorrentes e a atenção que o tema pedia, no entanto, não me levavam a mergulhar mais profundamente nele. O tempo continuou a passar, surgiram as cadeiras em cursos de roteiro, mas eu mesmo continuei de fora. Foi apenas durante um curso de produção, em uma cadeira de tecnologia, que me dei conta do quanto posterguei esse retorno. Não que ignorasse por completo a questão, a consciência sempre esteve ali… Era apenas uma certa indisposição, uma preguiça da idade, naquela falta de sabedoria de quem desmerece o moderno por se sentir ultrapassado. A falta de fôlego disfarçada por quem não tem mais tanta perna para correr.

Ao passo que o gráfico de crescimento do consumo de jogos eletrônicos era mostrado em um slide pela sala virtual, a consciência repreendia a negligência e a ausência de foco. O lado produtor puxava a orelha do lado roteirista, que desmereceu todo um segmento que, vá lá, não seria um campo de dominação nem se tivesse permanecido nele, mas poderia trazer pequenas e rentáveis oportunidades.

O despertar para o tema me levou a alguns artigos e reportagens, para além do material oferecido. Em artigo na Folha de São Paulo, esbarrei com Lipe Trezza, também um roteirista de meia idade, que, num caminho inverso, não apenas descobriu o nicho como abriu uma desenvolvedora para plataformas móveis. A Black Moluska Games está lançando em 2022 o seu primeiro jogo, “Wish Us Luck”. Encontrei posteriormente o trailer do game, interativo, repleto de personagens, mostrando bem o dedo de um contador de histórias na construção da ideia.

Wish Us Luck, game do estúdio brasileiro Black Moluska.

Na mesma matéria, uma pesquisa da Abragames mostrou que em 2021 foram desenvolvidos 643 jogos no país, empregando cerca de 12,4 mil pessoas. O mercado brasileiro já é o 12º no mundo, sendo o maior da América Latina e tendo capacidade, segundo especialistas, para chegar à liderança mundial no ramo. Isto em se tratando de uma indústria que, de acordo com estimativa da empresa de consultoria Newzoo, gerou quase US$ 197 bilhões em todo o mundo apenas em 2021. Um número que, segundo estimativas e projeções, só tende a aumentar.

Com a noção desse crescimento exponencial da indústria, é inelutável pensar no aumento da cultura dos games, o que, por conseguinte, pode indicar paulatinas mudanças no processo de aprendizagem e na formação cognitiva do ser humano. No artigo “Os jogos eletrônicos e suas contribuições para a aprendizagem na visão de J. P. Gee”, o doutor em Linguística Aplicada pela PUCRS, Marco Antoine Bomfoco, e o Mestre em Educação da UFSC, Victor de Abreu Azevedo, analisam os estudos feitos pelo renomado linguista e pesquisador James Paul Gee, mostrando como os “bons videogames” promovem a aprendizagem, exercitando intuição, reflexão, adaptação, transferindo conhecimento para novas situações. Segundo a análise, na prática, o jogador “aprender a aprender”, o que Gee denomina de ciclo de “sondagem, criação de hipóteses, sondar novamente, pensar novamente”:

“…este ciclo é a base da formação da mente da criança, não sendo diferente do modo como operam os especialistas, sendo básico para a boa prática da ciência, seja ela a praticada pelos alunos na sala de aula, seja ela a dos cientistas em laboratório. Apesar de sua importância, este ciclo geralmente não faz parte da forma como se aborda o aprendizado na escola.”

Bomfoco e Azevedo, referindo-se ao trabalho de Gee.

Por outro lado, em artigo da Revista Gerais da Universidade Federal de Juiz de Fora, Monique Bernardes de Oliveira Ferreira e Laísa Marcorela Andreoli Sartes pesquisam sobre o lado prejudicial dos jogos. Ao mesmo tempo que apontam a existência de possíveis transtornos causados pelo excesso de envolvimento com este tipo de tecnologia, concluem que não há ainda meios precisos de detectar e tratar tais disfunções, bem como uma escassez de pesquisas sobre o tema, principalmente no Brasil (FERREIRA; SARTES, 2018). Seguindo uma ou outra direção, pela moderação pedagógica ou pelo excesso, pelo bom jogo educacional ou pelo thriller violento, os games se fazem presentes e inevitáveis, servindo como ferramentas de formação, compreensão de mundo, construção de olhar, além de servir de base para as próximas tecnologias.

Uma exemplificação dessa fundação do futuro pode ser vista em dois vídeos sobre o metaverso, outro tema distante e obscuro para o menino que ainda hoje segura seu controle de Phanton System. No canal do site Big Think, o CEO e fundador da Epyllion, Matthew Ball, explica a inevitabilidade de uma nova onda tecnológica de convivência em três dimensões, através de um universo interativo que transcende o sentido de realidade virtual que se conhece hoje. Embora frise que o metaverso não seja um jogo, ele destaca que todo conhecimento agora relevante para a construção dessa inovação, seja pelo design, pelo desenvolvimento sistêmico, pelo modelo de mercado, provém do setor de games. Logo, por mais que não se limite a jogos eletrônicos, toda forma de pensar este novo universo nasce de um embrião já plantado pelo outro.

Após o mergulho em vídeos, artigos e matérias, fizeram-se mais e mais evidentes os questionamentos da memória RAM já rateando. Afinal de contas, em meio a mentes já educadas e adaptadas a esse ambiente, haverá espaço para o olhar de quem se formou pela tela analógica? Aquele que se constituiu pelos 8 bits conseguirá se fazer construtor desse novo mundo? Quantos giga-hertz um criador ultrapassado terá que correr para ter espaço?

As interrogações, é claro, vão além, não se limitando à realidade do interlocutor ou ao tema escolhido. Toda reflexão feita ao longo desse tempo, seja sobre a era dos streamings, as transmídias, as redes sociais ou inteligências artificiais, passou pelo efeito do tempo, se voltando para a angústia que consome a todos que se deparam com esta vida a cada dia mais midiática e tecnológica. E, de fato, poucos hoje estão efetivamente preparados para viver no mundo que se aproxima… Embora quem nasça neste contexto tenha certa vantagem após o tiro de saída, a velocidade com que as largadas acontecem e a consequente necessidade de constante atualização acabam causando uma defasagem em jovens e velhos. Ao fim, certos de que não seremos os únicos atropelados, a solução é mesmo respirar fundo, tomar fôlego e caminhar, respeitando o tamanho do próprio passo e torcendo para não ficar muito para trás… Saudosos dos tempos em que estávamos correndo na frente.

Alan Daniel Braga

Alan Daniel Braga

Publicitário, metido a cineasta, servidor federal nas horas não vagas.

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