Um Mundo de Trumans
No mundo real, Truman é um ator que encena a farsa para si mesmo, melhor que qualquer outro.
O Show de Truman é uma bela metáfora do mundo em que vivemos mas, como toda bela história feita para produzir sentimentos edificantes numa platéia de Trumans, só conta metade do feito.
No filme, escrito por Andrew Niccol, Truman descobre aquilo que toda pessoa com mais de três neurônios percebe ao atingir a maturidade: que o mundo é uma farsa e todo mundo mente pra todo mundo o tempo todo pra manter essa farsa.
Mas o Truman do filme, como todo bom herói, mergulha de cabeça nessa descoberta e simplesmente não aceita mais a farsa. Truman, embora criado numa mentira, é incorruptível em sua busca pela verdade. Lindo, mas isso é também uma grande mentira.
No show de Truman só ele é um Truman (o cara que não sabe de nada até que sabe de tudo), todos os outros são atores e tudo aquilo é feito pro Truman. Se você parar pra pensar é uma hipótese no fundo reconfortante. É tudo uma mentira, mas criada especialmente pra você (porque você é o centro do mundo).
Mas no meu mundo e no seu, as coisas são diferentes. Aqui todo mundo é Truman, todo mundo é ator, e ninguém sabe pra quem a mentira está sendo encenada.
A grande diferença mesmo, aquela devastadora demais para render um entretenimento saudável, é que no meu e no seu mundo, Truman vai percebendo a realidade aos poucos e, conforme a verdade se revela, alterna raros momentos de patética rebelião contra o exército de atores, com um comportamento mais frequente de absurda negação daquilo que ele já sabe.
No mundo real, Truman é um ator que encena a farsa para si mesmo, melhor que qualquer outro. É claro que o faz, pois a alternativa é ser esmagado como um inseto, já que no mundo real nenhum Truman é protagonista do teatro e pode ser pulverizado ao menor sinal de disfuncionalidade.
Então o Truman real, quando vê os bastidores da produção ou um refletor que cai do céu, sabe exatamente o que é e reage de forma precisamente contrária àquele. Olha pro outro lado, finge que não viu, inventa ele mesmo uma explicação fajuta para o óbvio: a mentira em que consiste sua vida é cheia de buracos, tão cheia que só podem ser cobertos por um oceano de covardia.
Então Truman sofre pela mentira e sofre pela verdade. Sofre pela mentira porque sabe que nada que ele faz ou fala, ou que os outros fazem e falam, tem um pingo sequer de verdade, sentido ou objetivo real, fazendo com que ele se arraste pelo cenário cumprindo o script como um canastrão envergonhado. E sofre pela verdade porque não há nada que Truman tema mais do que a verdade. A verdade o jogará no abismo da solidão, no deserto da responsabilidade, face a face com o criador.
O Truman da ficção vive no Show de Truman, já o da vida real vive num mundo de Trumans. E é assim que o Truman real leva sua vida de miséria espiritual: dentro de um domo, ofendido pela mentira, assombrado pela verdade, esperando o momento de sair dali por uma portinha no horizonte, pintada como se fosse o céu.