Coração Valente e Sem Arrego
Na história do Cinema, poucas falas tiveram um impacto tão profundo quanto o último grito de William Wallace na cena final de Coração Valente, filme dirigido e estrelado por Mel Gibson, lançado em 1995. Com apenas uma palavra, “Freedom!” (“Liberdade!”), o personagem conseguiu traduzir tudo aquilo que a narrativa do filme defendeu com louvor ao contar o drama de contornos épicos sobre o herói nacional escocês.
Durante o filme, o público aprende a admirar os nobres valores de Wallace, bravo guerreiro que desafia os desmandos da Coroa inglesa no fim da Era medieval, cujos representantes são apresentados com todos os vícios e características negativas dos melhores vilões cinematográficos. Tratando-se de uma obra ficção, livremente inspirada em lendas e nos poucos registros do período, o filme obviamente não tem compromisso com a fidelidade histórica. Ainda assim, a cena emblemática que fecha a obra tem problemas que ultrapassam essa questão, mas demonstram a habilidade do diretor e dos roteiristas em conduzir expectativas e produzir as emoções desejadas no público.
[Alerta de Spoiler]
Após ser traído por Robert de Bruce, nobre escocês que julgava ser um aliado, William Wallace é julgado por alta traição e condenado pelos ingleses à pena de tortura pública e execução. A partir daí, a narrativa consegue reforçar o caráter de ferro do guerreiro escocês, que resiste a todas as investidas para que renegasse seus ideais. Em primeiro lugar, é a própria Princesa quem visita Wallace no cativeiro, implorando para que ele jurasse lealdade ao Rei. Ela explica que a misericórdia, no caso, seria uma morte rápida, ou mesmo ser trancafiado na torre. Em tempo, quem sabe o que poderia acontecer, desde que ele continuasse vivo. Mas o guerreiro mostra toda sua força de vontade ao responder que, se fizesse isso, ele já estaria morto. “Every man dies. Not every man really lives” (“Todo homem morre. Nem todo homem realmente vive”), fulmina Wallace, numa frase de efeito sob medida para exaltar os ânimos do mais frio espectador.
A proposta era boa demais para uma recusa. Se o herói ainda tinha alguma esperança de continuar lutando pela liberdade de seu povo, conseguir a intercessão da futura Rainha, em troca de um simples pedido, ainda que fosse falso e de resultado incerto, era quase nada. Afinal, o martírio ali já estava garantido. Na História verdadeira, a chance de aparecer uma defensora daquele quilate era zero. Mas já que a ficção tinha lhe oferecido uma oportunidade de ouro, por que não abraçá-la?
Mas ele não abraçou. Conduzido até o cadafalso entre uma multidão em êxtase que o apedreja e escarnece dele, o guerreiro segue firme ante as provocações do juiz de execução, que exige um pedido de misericórdia, indicando a lâmina de um machado. Nada. Wallace então é pendurado pelo pescoço, sufocado até quase desmaiar, esticado nas cordas, e o juiz insiste que ele peça a tal misericórdia, sem sucesso. Até o povo já pedia por isso. Por fim, ele é preso numa cruz de madeira, como um verdadeiro Cristo, e começa a ser estripado ainda vivo. Naquele momento, já devia estar claro para todos ali que aquele coração era mesmo valente. Mas o executor, inexplicavelmente, continua esperando pelo pedido.
Após ter sido apedrejado, enforcado, estirado e estripado vivo, qual o sentido de ainda se oferecer alguma misericórdia ao condenado? Estava claro. Exultando de sadismo, o juiz de execuções diz ao povo que o prisioneiro deseja falar alguma coisa. Mas somente ele, um perfeito idiota criado por roteiristas para servir de escada ao herói da trama, ainda devia ter alguma esperança de que Wallace iria finalmente sucumbir e gritar: “Arrego!”
Confira a cena abaixo: