Quem Vai Dar Mole pro Coringa?
Coringa, filme de 2019 dirigido por Todd Phillips, alcançou grande sucesso de bilheteria nos cinemas, mas também dividiu as opiniões da crítica. Se, por um lado, muita gente exaltou a obra como uma reinvenção, ou mesmo subversão, do gênero de filmes baseados no universo de super-heróis, também houve quem rejeitasse a história por conta do que seria uma glamurização da violência e da doença mental, mascarada por um discurso condescendente e vitimista.
Opiniões à parte, o fato é que quase ninguém ficou indiferente ao filme que consagrou Joaquin Phoenix com o Oscar de Melhor Ator. Depois de aceitar o desafio de trazer novamente à tela um papel que já tinha ficado marcado pelas interpretações de Jack Nicholson e Heath Ledger (também premiado com um Oscar, de Melhor Ator Coadjuvante, em 2009), Phoenix imprimiu características peculiares ao personagem, conferindo muita força ao suspense psicológico que apresenta uma origem para o maior inimigo do Batman. Na versão de Phillips, um comediante frustrado chamado Arthur Fleck.
[Alerta de Spoiler]
Entre várias cenas memoráveis, aquela que conclui o longa-metragem ocupa um lugar especial, uma vez que possibilita diversas interpretações sobre o resto do filme. Depois de cometer uma série de atrocidades e provocar o caos na cidade de Gothan, o icônico vilão se encontra preso no famigerado Asilo Arkhan, onde parece se submeter a uma consulta com uma psiquiatra. Arthur aparece fumando um cigarro, assim como em muitas outras cenas do filme, e começa a rir de maneira assustadora. A médica então pergunta do que ele estava achando graça, e Arthur responde que estava apenas pensando em uma piada. Ela pergunta se ele não gostaria de contá-la, e o psicopata arremata o diálogo de forma perturbadora: “You wouldn’t get it” (“Você não entenderia”). Nos planos seguintes, já vemos o vilão saltitando pelos corredores da prisão, deixando pegadas de sangue pelo chão, enquanto ouvimos Frank Sinatra cantando “That’s Life”, cuja letra então ganha uma conotação sombria.
Gostando ou não do filme, e especialmente desse final ambíguo, não há muito o que contestar em relação ao ótimo trabalho de Joaquin Phoenix e Todd Phillips, pelo menos quanto à intenção de construir um personagem sinistro, capaz de fazer o público se remexer nas cadeiras do cinema e ranger os dentes de nervoso. Mas, excetuando-se a hipótese de que tudo aquilo que foi mostrado não tenha passado de uma fantasia na cabeça de um maluco incurável, o que de fato é uma das possibilidades da narrativa deixada em aberto, a cena final só funciona porque tanto a psiquiatra quanto os espectadores foram conduzidos a um estado da mais estapafúrdia ingenuidade.
Vejamos: naquele momento, todos já tinham pleno conhecimento do perigo representado por Arthur Fleck. Ele já tinha matado três executivos, um companheiro de profissão, a própria mãe (!) e o apresentador de TV Murray Franklin, sendo que este último assassinato tinha ocorrido ao vivo, na frente das câmeras do mesmo programa em que confessara ser o autor da morte dos três primeiros. Além disso, tinha se tornado o líder inspirador do movimento anárquico e destrutivo que arrasara a cidade. Certamente esta parece uma ficha corrida mais do que suficiente para que Arthur jamais estivesse sozinho numa consulta médica, sem escolta policial, com as mãos livres, provocando o interlocutor. Mas, como sempre, se tudo tivesse ocorrido conforme os padrões de normalidade, a cena perderia toda a força.
Como se não bastasse o contexto absolutamente forçado, a repetição macabra do modus operandi completamente doente que tinha resultado no assassinato de Murray também deveria servir como um alerta mais do que vermelho. Um pouco antes de meter uma bala na cabeça do apresentador, Arthur Fleck tinha lhe perguntado se ele não gostaria de ouvir uma última piada. Ao contrário da imprudente psiquiatra, pelo menos, a resposta de Murray tinha sido óbvia: “No, I think we’ve had enough of your jokes” (“Não, chega das suas piadas por hoje”).
Confira a cena abaixo: