Daltonismo

Daltonismo

Tudo começou num dia de infância quando alguém me deu uma explicação equivocada sobre o que seria o daltonismo: “É quando uma pessoa troca cores, por exemplo: onde há azul, vê amarelo e onde há amarelo, vê azul”, explicou-me o tal. Minha resposta foi uma pergunta retórica: “Então como você sabe?”. Um dia alguém me apontou o céu e disse que aquilo era o azul. Se eu visse amarelo, chamaria de azul e ninguém, munido do método que fosse, jamais seria capaz de saber. Aliás, quem me garante que aquilo a que o outro chama de azul é o azul que eu vejo? Para pergunta tão banal, nenhum arauto da objetividade no pátio da escola pôde me dar uma
resposta satisfatória. Mais tarde vieram me explicar o daltônico como alguém que não consegue ver determinada faixa do espectro de cores, o que o levaria a não conseguir
diferenciar certas cores por serem compostas, por exemplo: cego para o vermelho, o daltônico confunde verde com marrom. Eis aí uma limitação que outro é capaz de perceber.

Eureka! Conhecer e diferenciar são o mesmo. Conhecer é reconhecer ou negar reconhecimento. Este insight fundou minha consciência epistemológica. A ciência se funda exatamente naquilo que não se pode saber. Há ali mais vontade de poder do que de saber. Poder exercido dentro dos limites da capacidade da linguagem de diferenciar e, portanto, identificar as coisas. Mais que isso: poder que se exerce não só pela superação desses limites, mas também por sua conservação.

Eis então o caminho que segui (meu método): se há algo a ser discutido, pensado ou aprendido, não é aquilo que as coisas são, mas as motivações que nos levam a, por vezes, pôr fronteiras entre elas e, outras vezes, a ignorar as diferenças existentes dentro dessas mesmas fronteiras.

Diferenças e semelhanças são tudo que experimentei e conheci em minha vida. Das coisas mesmas nada soube. Comparar é o trabalho de construir conhecimento. Se algo me fez desejar interferir nessa ordem, foram as situações em que me vi submetido a um certo daltonismo conveniente para outros, mas não para mim individualmente. Sobretudo, e a partir de então, não mais admitiria ter o testemunho de minha experiência cassado em nome de outro, pretensamente menos daltônico ou mais “fundamentado”. Tudo que fazem as teorias é a apologia de algumas paixões e a sabotagem de outros desafetos. Nada mais podem as palavras analíticas da ciência além de dividir e fragmentar. Toda ciência é humana.

Munido dessa visão cética a respeito das justificativas racionais e pirotécnicas que os homens dão ao uso pressuposto de seus valores arbitrários, ingressei na academia convicto de que a única coisa nobre que pode ser feita com os signos (signo é aqui uma palavra inocente de definição) é arte. Arte que para mim se define como uma composição de signos que tem por princípio justamente o desprezo pela ordem, que me irritava ver sendo perseguida em discussões estéreis sobre a ética jornalística ou uma tal “qualidade” que faltaria à programação das emissoras de TV. A academia é também, muitas vezes, uma reserva de erudição conservadora.

Meu fetiche, no entanto, se dirigia para o cinema e seu poder de arrebatamento. Desejava de uma escola de comunicação que ela me municiasse dos artifícios capazes de arrebatar com palavras, imagens e sons. Esse era o único conhecimento que interessava: instrumental, eficaz e amoral. Estava mesmo convicto de que o exercício da teorização acadêmica só se explicava pelo fracasso de um projeto artístico. Recalcado, o artista retorna sob a forma de um scholar impiedoso, que explica ao mundo seu fracasso pelas regras que determinarão o fracasso de todos. “Quem sabe faz, quem não sabe ensina”, diz o ditado mais impiedoso com a vocação do magistério, ao qual hoje me dedico integralmente.

Mas, naquele momento, eu desejava o saber fazer, longe do positivismo totalitário da de uma pseudociência consultiva, extremamente politizada, que me parecia incomodamente dominante na academia, em detrimento justamente do aprendizado artesanal que eu buscava. Ao mesmo tempo, encontrei na escola indícios de um outro tipo de reflexão teórica. Os Sofistas, Nietzsche, e mais alguns filósofos se uniram a Jung e o niilismo abissal da filosofia oriental para construir em mim uma alternativa à convicção do estelionato político possivelmente mascarado como metodologia científica (uma economia política do não-pensar) e marcar um rompimento prematuro com tudo que a autoridade intelectual representava.

Acreditava que o emblema do pensamento de estufa universitária era a nota de rodapé. Referências bibliográficas me pareciam uma constrangedora caricatura da insegurança daquele que cita e da mistificação do que é citado. Por falta de microscópio, o cientista das humanidades se debruça sobre a doxa alheia. A comunicação, como ciência demasiado humana, é um campo onde o poder de opinar está em jogo.

Como sobreviver no que me parecia o território minado da tradição teórica das ciências humanas? Todo o acúmulo histórico de formalidade sufocante condicionaria o direito de falar a um levantamento arqueológico-bibliográfico-metodológico sujeito a regras ambíguas que tornariam a
tarefa da produção intelectual interminável, inexeqüível, estrada dos mil pedágios, túmulo do pensamento.

Foi, por assim dizer, uma relação de amor e ódio. Enquanto meus colegas pegavam seus diplomas como cartas de alforria e abandonavam a escola para sempre, eu segui, como um rebelde fiel, a dialogar com o objeto através dos textos e a dialogar também com os textos através do objeto sempre com uma mistura de culpa e um certo prazer perverso por manipular e iludir onde se exige isenção e disciplina. E não é essa culpa e esse prazer a ética de todo cientista?

Após essa confissão, posso crer que o ensaio é o único estilo que qualquer um pode produzir em ciências humanas, se quiser ser sincero com o leitor. Creio que a questão central aqui é a legitimidade do enunciado. Por exemplo: me revoltei com uma professora que de certa feita afirmou que uma vez que eu não havia lido um certo texto, por isso não poderia comentá-lo. A afirmativa é, a princípio, incontestável. Não posso representar algo a que não fui apresentado. No entanto, um texto não é um objeto fechado em si mesmo. Pelo contrário, é uma composição de signos e regras de associação entre eles que representa algo que é (este sim) o objeto da representação. Da mesma forma, um texto (qualquer texto) versa sobre algo que existe para além do campo textual. É um enunciado emitido por
um sujeito acerca de um objeto. Cabe agora reformular a pergunta: pode alguém que não leu um texto, emitir legitimamente um enunciado sobre o objeto representado no texto? Ou dito em português claro, como disse na ocasião: não posso falar do texto mas posso falar do objeto. Ou não posso?

Para responder a essa pergunta é preciso definir se o objeto de estudo é o texto ou o objeto representado pelo texto. Problema este que pouco é encarado pelas ciências humanas ficando restrito à curiosidade de alguns filósofos. Se o objeto de estudo é o texto, alguém que o lê detém autoridade moral para enunciar legitimamente sobre o texto, mas não sobre o objeto por ele representado. Parece que, muitas vezes, o que está em jogo nas ciências humanas não é a legitimidade do enunciado sobre objeto,
mas a autoridade moral sobre o texto.

A legitimidade da enunciação é dessa forma transferida para o autor (sujeito da enunciação) e outorgada ao estudioso do texto, convertido aí numa espécie de sacerdote. Que a relação com o texto seja essa é perfeitamente compreensível, os primeiros textos são até hoje sacralizados, mas será então que a religião e as ciências humanas dividem um mesmo método/fundamento (da sacralidade do texto)? Será o artigo acadêmico debatido na mesa da pós-graduação um verdade revelada? Evidencia-se aí uma relação canônica com a figura do autor, que nem sempre é Deus. A reverência e submissão do leitor perante o autor é uma estratégia das ciências humanas para lidar o problema do fundamento, imposto segundo as regras das ciências naturais e exatas.

Constrói-se o palco para uma cena edípica. O leitor, filho submisso, deve assimilar o pai completamente para assim apoderar-se de sua autoridade. O texto, primeiro é adorado em um altar para em seguida ser apropriado em sua legitimidade na forma de um outro texto, “novo”, que confere ao ex-leitor a legitimidade conquistada através da educação.

O problema que leva à cassação da fala do sujeito que não leu é que este fala acerca do objeto, e o faz em seu próprio nome, o que é inadmissível na tradição dessa sociedade do conhecimento. Já o sujeito educado fala em nome do autor e acerca do texto, jamais abandonando os jardins seguros da erudição. A maior ou menor legitimidade de um sujeito nesse sistema varia conforme sua capacidade de demonstrar que leu, ou seja, que não fala em seu próprio nome. Paradoxalmente a conquista dessa legitimidade tem como objetivo a libertação em relação à dimensão textual e o conseqüente ingresso na classe autoral.

À classe leitora cabe tão somente o papel de comentar o texto. É privilégio exclusivo da classe autoral a emissão de enunciados de representação do objeto. Privilégio cuja longevidade e raio de ação dependem da manutenção do compromisso do autor com o universo da textualidade. Quanto menos autoral for o autor maior será sua autoridade.

O expediente garante a conservação do ideal positivista do conhecimento visto como um todo sistêmico. Evita legitimamente a dispersão e a redundância. O texto deve possuir descendência, deve pousar no topo de uma pilha histórica de outros textos. Sem o amparo dos nomes nas notas de rodapé nenhum texto acadêmico se sustenta, simplesmente porque o seu autor, no ato da escrita, porta-se como leitor e torna-se autor justamente por isso.

Incluídas imperfeições lógicas e gafes intelectuais acima, fica aqui plenamente justificada minha relação cética (e cínica) com a academia e também as razões pelas quais dei-lhe as costas logo que ficou clara a indisposição desta para com esse meu método. O diploma de Doutor jaz em alguma gaveta e me rendeu uma sinecura qualquer que, se não dá sentido algum à vida, ao menos serve para pagar meus luxos de elite intelectual em nação desigual, como fazem os acadêmicos profissionais. Eis o que tenho a relatar sobre o assunto. Passemos ao próximo tópico.

Daniel Mattos

Daniel Mattos

Nasceu em Petrópolis, em julho de 1975 e recebeu o nome de Daniel Vidal Mattos. Desde então está em busca de respostas sobre o que é ser Daniel Vidal Mattos, nascido em Petrópolis em julho de 1975. Não se parece com a foto aqui publicada.

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