“Escrevo”

“Escrevo”
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Um homem, já idoso, decide escrever um livro de suas memórias por querer deixar tudo que viveu, sentiu e pensou registrado (talvez como uma derradeira tentativa de imortalidade), e assim o faz.

Porém, em seu leito de morte, ele revela ao filho caçula que sua biografia é uma mentira, pois não passa da visão de um velho sobre a vida. E que ver depois não é ver melhor. Seus escritos nunca retratariam de forma verdadeira os acontecimentos de sua infância, ou de sua juventude. Sentia-se como se, ao falar de si mesmo quando moço, falasse de outro. E que por muitas linhas teve vergonha do que já acreditara e justificava declarando que “era imaturo”. Tal vergonha o envergonhava perante a verdade perdida da qual já não podia dar testemunho. Assim, o velho pede ao filho que não incorra no mesmo erro, ainda que não saiba como.

O filho, ainda muito jovem, produz imediatamente uma biografia de sua infância. Fala de tudo sobre si da primeira memória até ali. Acredita ter salvado o viço das garras da maturidade. Mais tarde, faz uma nova biografia revisitando as histórias já contadas da infância e acumulando ainda as da juventude. Anos depois, relata infância, juventude e maturidade. Por fim, na velhice, escreve um último relato reunindo todas as suas memórias.

No entanto, ele chega à uma angustiante conclusão. Se, a cada registro, a infância é contada de forma diferente (provando que a conclusão do pai era justa), por outro lado o início de cada tomo continua sendo prejudicado por uma visão defasada. Uns poucos anos eram bastante para faze-lo discordar de si mesmo. Assim, antes de morrer, ele conta ao filho caçula a história do pai, a sua própria, e incumbe ao garoto a missão de solucionar o dilema.

O rapaz conclui que só um diário poderá ser fiel aos sentimentos que realmente motivariam seus atos na vida. Anota, por anos a fio, as idéias frescas no diário.

Tempos depois, já um homem, percebe que, ao escrever as páginas do diário ao fim do dia, já havia mudado de idéia e sentimento em relação à manhã do mesmo dia. Acordava querendo, com toda justeza, incendiar o mundo e dormia escrevendo que acordara de mau humor. Angustiado com a possibilidade de falhar em sua missão ele passa a escrever duas vezes por dia, depois três vezes e quatro, cinco, seis vezes. Por fim, tomado pela perplexidade diante da natureza volúvel de seus próprios sentimentos e pela impossibilidade de dar testemunho de si mesmo, põe-se a escrever tudo o que lhe acontece e o que pensa no momento exato em que tais acontecimentos e pensamentos se apresentam.

Poucas páginas adiante, está a última anotação do último diário da família:
“Escrevo”.

Rio de Janeiro, 1998.

Daniel Mattos

Daniel Mattos

Nasceu em Petrópolis, em julho de 1975 e recebeu o nome de Daniel Vidal Mattos. Desde então está em busca de respostas sobre o que é ser Daniel Vidal Mattos, nascido em Petrópolis em julho de 1975. Não se parece com a foto aqui publicada.

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