O Bolo e o Queijo
Conto original de Luis Fernando Lima de Brito que deu origem ao curta-metragem homônimo da Demian, de 1999 (que você pode assistir na nossa página principal).
Rufião Tenório acendeu outro cigarro de palha e olhou as horas no relógio de pulso barato. O sol já se tornara vermelho-sangue-de-fim-de-tarde e o mórbido pistoleiro achou aquela cor bastante apropriada ao momento.
Rufião Tenório olhou para a estrada de terra que serpenteava a alguns metros de distância e também pensou que havia escolhido um ótimo local para a tocaia.
Matias Pereira sorveu o último trago do café forte e amargo que sua comadre Isaura lhe preparara. Estava apreensivo e todos naquela casa sabiam disso. Não era para menos: na manhã seguinte, iria às escondidas até a cidade vizinha, São Gerardo, pedir proteção policial a sua candidatura, já que a própria polícia de Lavradouros era fielmente submissa ao Coronel Porfirio Albuquerque.
“Não é melhor você dormir aqui, hoje? É bem capaz do Coronel ter mandado alguém pra dar cabo de você…” Matias Pereira riu. “E eu lá sou homem de ter medo de cangaceiro, Isaura! Vou pra casa sim, vou
dormir junto com minha mulher e meus filhos e se Deus quiser, amanhã eu parto pra São Gerardo bem cedinho, antes do sol raiar”. “Decidido desse jeito, o compadre vai acabar ganhando a eleição, mesmo”, comentou Seu Antônio, rindo. “Mas se é o que eu quero! O povo tá comigo, ninguém aguenta mais os Albuquerque na prefeitura! Chega de roubo e chega de tanta morte, diabos!” “Já tá falando igual a político de verdade. Mas a Isaura tem razão, Matias… Todo mundo sabe que foi o Coronel que mandou matar o adversário na última eleição… Tanto é, que dessa vez só tu teve coragem de se candidatar contra o filho dele…” Matias logo reagiu: “Povo medroso… Se fosse um tiquinho de nada mais unido, o coronel não fazia todo mundo de besta…”
Seu Antônio e a esposa se calaram, pois sabiam que também eles eram omissos. Também eles, assim como todos em Lavradouros, faziam vistas grossas às atrocidades do coronel. Todos o temiam, exceto Matias Pereira.
Rufião Tenório continuou a lustrar sua espingarda com o pano branco embebido em óleo queimado. Olhava para a estrada em curtos intervalos de tempo, atento a todo ruído que não fosse o pio dos bacurais. Em breve seria noite e a lua nova o impossibilitaria de cumprir o serviço, o último de sua vida. O último, sim, pois Rufião Tenório, apesar do sugestivo nome, não era homem de gastar dinheiro a toa, com mulheres e farras: economizara cada centavo que recebera pelos seus “préstimos”, o suficiente para sair da miséria e levar uma vida decente, sem precisar matar para sobreviver. Era o pistoleiro mais requisitado e confiável da região: nunca perdera uma tocaia, nunca deixara de cumprir sua obrigação e nunca sentia pena do condenado, não importando que ele tivesse esposa e dez filhos para criar. Tanto os poderosos que o contratavam quanto os jurados de morte sabiam que, em se tratando de Rufião Tenório, não adiantava implorar pela vida.
A barata veio se esgueirando pelos cantos, com suas antenas a perscrutar o ambiente frio e úmido. Pelas vibrações no chão, sabia que os gigantescos predadores estavam em casa. Parou sob o armário, farejando o ar, imóvel e silenciosa, como só o sabem ser as baratas. Seus asquerosos pelos se arrepiaram ao sentir o suave odor de comida: migalhas de bolo à esquerda, sob a mesa, onde dois gigantes bípedes bebiam café, e um minúsculo pedaço de queijo-de-minas, já meio pisado, à direita, próximo à entrada da cozinha. A barata tinha de se decidir entre o queijo e o bolo.
O tempo era curto, seu estômago de besouro mutante queria se fartar. Decidiu-se pelo bolo: achou-o mais apetitoso. Saiu de baixo do armário e correu até o velho fogão esmaltado. Até ali, tudo ia bem: ainda não havia sido descoberta pelos terríveis gigantes bebedores de café.
O pistoleiro olhou para o relógio. Havia ainda uma hora de sol, e em menos de vinte minutos Matias Pereira sairia da casa do afilhado, como sempre fazia nas tardes de sexta-feira. Cavalgaria até sua casa, cinco quilômetros adiante, só que dessa vez Matias Pereira não o deixaria chegar ao seu destino.
Seu Antônio viu a barata sair de baixo de fogão e se levantou, em um pulo só, para dar cabo do animal. O inseto, sentindo o perigo, deu uma súbita guinada para a esquerda, em uma manobra tão rápida e audaciosa, que conseguiu enganar o perseguidor. Seu Antônio ainda tentou pisá-la uma, duas vezes, mas o animal correu novamente para baixo do armário. Matias Pereira, vendo o sufoco pelo qual o compadre passava, levantou-se em seu socorro. Ajoelhou-se em frente ao armário e viu a barata a mexer suas antenas eletrizadas de pavor. Esticou o braço, assustando-a e fazendo-a sair a campo aberto.
“Ali!”, gritou o compadre, apontando para umas prateleiras. Matias arrastou-se para o lado, ainda ajoelhado, e como não tinha nada nas mãos, cerrou o punho e esmagou a barata em um só golpe.
“É isso o que eu vou fazer com o Coronel Porfirio”, pensou. Levantou-se com tanto ímpeto, que esqueceu que estava sob as pesadas prateleiras de madeira maciça. Seu Antônio sequer teve tempo de alertá-lo e Matias deu uma pancada tão forte na quina de madeira, que abriu um grande corte no couro cabeludo. Isaura saiu correndo do quarto, ao ouvir a confusão, alarmando-se com o sangue que escorria da cabeça do amigo. Pensou que tivesse sido uma bala encomendada pelo coronel, mas quando soube que havia sido apenas um acidente doméstico, acalmou-se e saiu para preparar um curativo.
“Agora você vai ter de dormir aqui… Até Isaura enrolar um negócio nessa sua cabeça, vai tá bastante tarde”, disse o compadre. “Vai nada… Só vou pegar uma pontinha da noite… Não posso deixar ‘Das Dores e as crianças sozinhas em casa… Não é direito”. Não adiantou insistir para que ficasse: fechado o ferimento e feito o curativo, o candidato a prefeito se despediu dos amigos, montou no cavalo marrom escuro e ganhou a estrada, no momento em que o sol acabava de se pôr e as trevas ameaçavam engolir o mundo. Cavalgava vagarosamente pois o ferimento, embora estivesse com a hemorragia estancada, ainda latejava com qualquer movimento brusco.
Quando Rufião Tenório viu o cavalo despontar atrás da curva, sentiu-se aliviado: apesar de ser quase noite, a fraca luminosidade que ainda restava seria mais do que suficiente para o seu olho experiente acertar o alvo àquela distância. Destravou a arma cuidadosamente e ajoelhou-se atrás de uma árvore. Depois, apoiou com firmeza a coronha no ombro e mirou o cavaleiro, com o dedo tenso e ao mesmo tempo firme pronto para o último gesto de sua carreira.
“Diabos!” resmungou, abaixando a arma. Aquele não era o cavalo de Matias e nem aquele cavaleiro era a sua vítima. O pistoleiro saiu da incômoda posição e sentou-se novamente no local de espera. Ficou ali, planejando o futuro, pensando na fazenda que compraria e na futura esposa. Teria, enfim, uma vida normal.
“Que se dane! Que se dane! Pra mim, já acabou…” disse para si, vinte minutos depois. “O homem não vem mais, que ele não é nenhum besta de dar essa moleza pros inimigos… Quer saber do mais? Esse cabra, esperto como é, deve de dar um bom prefeito!” Soltou uma gargalhada alta, montou no cavalo negro e saiu em disparada, disposto a reconstruir a vida em cima do seu dinheiro sujo de sangue.
Assim que a poeira levantada pelo cavalo do pistoleiro assentou, Matias Pereira passou pelo local da tocaia, preocupado com o corte que levara na cabeça e com a família. O futuro prefeito de Lavradouros sequer podia imaginar que aquele pequeno atraso de vinte minutos lhe havia salvo a vida. E sequer imaginaria, na sua futura vida de homem público que, no fundo, no fundo, a paz e a prosperidade iriam, enfim, chegar a Lavradouros graças a uma barata. Uma insignificante barata que havia tomado a decisão correta, preferindo o bolo ao queijo.