I. Eu Amo a Coca-Cola!
A policial tinha acabado de finalizar uma ligação na Central, quando percebeu uma grande barata passeando calmamente sobre a mesa. Com um misto de raiva e nojo, ela afasta o inseto repugnante, no mesmo momento em que o telefone volta a tocar.
– 190, emergência. – Repete a agente da lei, mecanicamente.
– Olha só… Eu tô no shopping, roubaram uma joalheria. Tão achando que fui eu, mas… – Diz de forma afobada uma voz adolescente, do outro lado da linha.
– Nome, RG e Endereço, senhor. – Interrompe a agente, sem paciência.
No telefone público de um shopping center, Mateus se diverte com um amigo, tapando o fone com as mãos para esconder o riso:
– RG? Desculpa, mas eu não tenho de cabeça porque pegaram minha carteira…
– Roubaram sua carteira ou o shopping, senhor?
– Como assim? Tão roubando o shopping aqui e vocês ficam me colocando numa gincana da burocracia?!
– Lamento, senhor. Sem estas informações nada poderemos fazer.
– Não?! – Mateus finge irritação: – Olha só, minha filha, manda alguém pra cá rápido e agora!
A policial encerra a ligação, já de saco cheio. Divertindo-se com a situação, Mateus liga de novo.
– 190, emergência.
– Olha aqui, minha senhora… Isso aqui é sério! Manda uma patrulha pra cá agora!
– Senhor, saiba que podemos rastrear sua ligação e processá-lo por desacato à autoridade.
– Isso! Pode rastrear! Vocês vão ver que eu não tô passando trote nenhum, PORRAAA!
A agente perde a paciência de vez e desliga. Mateus e seu amigo gargalham, e ele tenta ligar de novo. Mas, dessa vez, a ação é interrompida por alguém que praticamente arranca o fone de suas mãos. Fred, um rapaz forte e de expressão agressiva, enxota os dois adolescentes dali apenas com o olhar. Usando o celular para verificar sua agenda de contatos, Fred usa o telefone público para fazer uma ligação:
– Levi’s, boa noite… – Atende uma das vendedoras, de forma protocolar.
– E aí, gostosa?
– Quem tá falando? – Pergunta a vendedora, antes de reconhecer a voz do outro lado da linha: – Fred?
– Eu mesmo, gata.
– Tá ligando de onde? Pelo celular da loja não deu pra reconhecer o número…
– Meu celular tá babado, Dani. Depois te explico.
– E aí, tudo certo pra hoje à noite?
– Hoje?!
– Esqueceu? Já tá tudo combinado!
– É, só que hoje não vai rolar. Pintou uma parada. De repente eu apareço lá mais tarde.
– Então tá. O Júnior e o Duda vão.
– Eles também não vão poder ir não.
– Ih… Vocês também, hein? Cheios de coisinhas…
– Qual foi, Dani… Tô te dizendo, não tem erro. Eu tô aqui no shopping, depois a gente se fala.
– Então tá.
Dani desliga o celular e percebe que um sujeito com feições indianas, usando um turbante, entrou na loja. Meio sem jeito, o homem confere algumas peças de roupa numa arara. Ao mesmo tempo intrigada e interessada, a vendedora se aproxima:
– Posso ajudá-lo, Senhor?
– Não compreendo você.
– May I help you, sir? – Insiste Dani.
– I don’t understand you. – Rebate o sujeito.
Por conta do turbante, a vendedora arrisca um novo idioma:
– mujhe lagata hai ki “naya sinema” kharaab hai.
– main bhee. – Responde o homem de turbante, com um sorriso.
Enquanto Dani atende o sujeito, um grupo de meninas sai da loja conversando:
– E aí? Vamos ao cinema amanhã? – Pergunta a morena de cabelo curto.
– Tudo bem. Mas filme brasileiro não! – Responde a loira magrinha.
– Ih! Olha quem tá ali! – Interrompe a ruiva mais alta, já acenando.
As três param no corredor do shopping e começam a fazer gracejos em direção à porta de saída. Vindo na direção contrária, Jorginho, um dos seguranças fardados, logo percebe os gestos. Por um momento, o funcionário acha que as meninas estão tentando falar com ele, abre um sorriso e fica lisonjeado, tentando manter a pose. Mas sua ilusão se desfaz repentinamente quando Duda, um jovem alto e muito forte, toca no ombro do segurança, pedindo passagem. Constrangido com o equívoco, Jorginho dá meia volta e sai de fininho, misturando-se com os passantes. Junior, um rapaz baixinho e atarracado, está acompanhando Duda, mas resolve ir ao banheiro quando os dois se encontram com as meninas.
No banheiro, Junior se dirige a uma das cabines. Quando abre a porta, percebe que um dos faxineiros do shopping, de cabelos compridos e usando um boné para trás, está urinando. Incomodado, o funcionário se vira e dá uma olhadinha para o jovem, que tenta a cabine ao lado. O local também está ocupado por outro faxineiro, que lê uma revista enquanto faz cocô. Junior então se dirige para outro reservado e se surpreende quando encontra o mesmo sujeito de boné que tinha visto antes, ainda mijando. Incrédulo, ele fecha a porta e volta rapidamente para a primeira cabine, mas dessa vez dá de cara com um negão enorme de terno, com cara de pouquíssimos amigos, usando um crachá que o identifica como chefe de segurança do shopping. Muito confuso, Junior se dirige à terceira cabine para se certificar de que não estava ficando louco, mas dessa vez quem sai do local é outro sujeito negro e alto, mas magro, também vestido de terno, supervisor de segurança do estabelecimento comercial. Coçando a cabeça raspada, o jovem não acredita quando vê um senhor de meia idade saindo da cabine do meio carregando algumas sacolas de compras.
O homem sai do banheiro com as sacolas e entra numa pizzaria para jantar. O restaurante está completamente vazio. Arnaldo, proprietário do estabelecimento, se apresenta para servi-lo, colocando um cardápio em cima da mesa.
– Alguma sugestão? – Questiona o senhor de meia idade, arrumando as sacolas numa cadeira.
– Romana. Romana à Papatinha. – Sugere o dono.
– Não… Romana não. Eu prefiro uma Portuguesa.
– Não tem.
O homem analisa o cardápio e pede outra opção:
– Então… Margherita.
– Não tem.
– Pô… Então traz uma Muzzarela.
Arnaldo faz uma cara de constrangimento.
– Não tem Muzzarela?! – Estranha o cliente.
– Não tem.
– Me diz aí então o que que você tem!
– Romana. Romana à Papatinha.
– Então me traz essa Romana. Mas sem a Papatinha.
– Por quê? – Diz Arnaldo, estranhando.
– Porque eu tive um amigo, o Papatinha, que uma vez comeu uma pizza romana e vomitou tudo.
– Peraí… Você estudou no Liceu?!
O cliente acena afirmativamente para o dono da pizzaria, cujo rosto começava a lhe parecer familiar. De forma recíproca, Arnaldo aponta para ele:
– Paulo… Roberto… Salvador Delfino. PALHINHA!
– Arnaldo… Arnaldo… JABÁ!
Quando se reconhecem, os dois homens se cumprimentam efusivamente, e só interrompem as reverências quando avistam, do lado de fora da pizzaria, uma jovem estonteante que olha o cardápio colado na vitrine.
Percebendo os tiozões babando dentro do restaurante, Gabrielle desiste da pizza e se dirige para o café ao lado. No balcão, ela pede um expresso para o atendente. Ao seu lado, um rapaz de cara simpática está bebendo um refrigerante. Quando o café chega, o sujeito coloca o dedo dentro da xícara e lambe, fazendo uma cara de aprovação. A princípio enfurecida, a jovem calmamente pega seu café e derrama o líquido dentro do copo de Coca-Cola do rapaz. Sem perder a pose, ele usa o canudo para dar uma sugada com gosto na mistura. Gabrielle sorri, mas vai embora dali. O rapaz observa a jovem se afastar, mas logo percebe que seu amigo já tinha chegado no fast-food do outro lado do corredor, onde tinham marcado de se encontrar.
O rapaz vai até a lanchonete, levando seu copo de refrigerante batizado. Ele se senta na mesa e cumprimenta o amigo, ainda olhando na direção de Gabrielle:
– Fala Danton…
– Fala Davi, já peguei meu lanche. Tá procurando alguém, velho?
Davi apenas olha para o amigo, sugando saborosamente o resto do líquido no fundo do copo:
– Ahhhhhhh! Eu amo a Coca-Cola!