II. Subgerente
[Antes: I. Eu Amo a Coca-Cola!]
Davi nem tinha terminado de completar sua declaração de amor ao refrigerante quando Danton resolve provocar o amigo por conta daquela manifestação idiota:
– Ama? Você tem aqui no meio uma Coca-Cola. – Danton pega o seu próprio copo de refrigerante e posiciona no centro da mesa. E continua, dessa vez usando uma caixinha de sanduíche com restos de lixo: – Desse lado, tem uma mala cheia de dinheiro. – Danton então pega o seu copo de sundae e finaliza: – E do outro, a Marina Ruy Barbosa pelada. O que você escolhe?
– Bem, dadas as circunstâncias, eu fico com o teu sundae! – Responde Davi, já metendo uma colherada do sorvete na boca.
Na mesa ao lado, Danton e Davi não percebem, mas dois sujeitos vestidos socialmente trocam disfarçadamente suas malas por entre as cadeiras. Logo depois, eles se levantam e saem.
– Eu não entendo essa sua tara por Coca-Cola! – Protesta Danton, pegando o sundae de volta.
– Isso aqui, cara, isso aqui foi feito pra ser bom! Esse é o refri mais famoso no mundo. E sabe por quê? Por que Fanta Laranja tem que ter gosto de laranja, Fanta Uva tem que ter gosto de uva, mas Coca-Cola, cara, só tem que ter gosto de Coca-Cola! É original! Os caras inventaram um sabor!
Na mesa ao lado, duas freiras se entreolham, espiando a conversa. Davi continua:
– É por isso que Coca sempre vai vender mais do que Pepsi: Coca-Cola tem gosto de Coca-Cola. E Pepsi também tem que ter gosto de Coca-Cola. Aliás, envergonha-me estar aqui proclamando o óbvio.
– Sabor original… Nego criou essa merda pra lavar pia! – Provoca Danton.
– E daí? Raquete de tênis foi inventada pra andar na neve.
– Peraí, Davi. Aquela porra não é raquete de tênis!
– Isso! E Coca-cola não é detergente! Isso é lenda. É que nem dizer que a Coca pagava pro Mineirinho não entrar no Rio de Janeiro.
As freiras já tinham ido embora, mas três homens pareciam acompanhar o papo dos amigos com muito interesse. Num movimento rápido, Danton interrompe a conversa e pega uma bolinha de tênis no bolso do casaco, mostrando o objeto para Davi. Ele examina a bolinha por um instante, e percebe que ela está assinada pelo Gustavo Kuerten.
– Caralho, Danton! Tirou essa do sarcófago, hein? Pelo menos agora a gente vai ter duas bolinhas pra jogar no sábado. – Exclama, Davi.
– Tá maluco? Vou guardar. Foi a Dani que me deu.
– Tua namorada te deu essa merda? Tinha que ser vendedora.
– Vendedora não! Subgerente.
– Subgerente? Que porra é essa?
– Subgerente, porra. Numa escala hierárquica, está acima dos vendedores e só fica abaixo do gerente.
Na mesa ao lado dos amigos, um casal apaixonado se beija. Davi rebate com ironia:
– Escala hieráquica em loja de shopping? Você tá ouvindo o que tá falando? Não tem essa, porra. O que ela faz nessa loja?
– Ela vende, atende o público.
– Vendedora.
– Mas tem outras responsabilidades também: abre a loja…
– Primeira a chegar.
– Fecha o caixa…
– Última a sair.
– Faz controle do estoque…
– Sumiu, pagou.
– E ganha mais por isso.
– Quanto?
– Um por cento.
– Um por cento?!
Na mesa ao lado, agora uma mulher ensaiava com seu violoncelo, enquanto um adolescente aplica um mata-leão em outro. Davi protesta:
– Chega mais cedo, arruma a loja, vende, atura cliente, vende, garante o cheque, vende, o cheque volta, paga, fecha o caixa, confere o estoque, paga a diferença, sai mais tarde que todo mundo e… Ganha um por cento a mais por isso. Um por cento!
– Você só tá esquecendo de uma coisa: pra chegar a gerente, primeiro tem que ser subgerente.
Os amigos não percebem, mas a instrumentista e os moleques já deixaram o local. Em seu lugar, dois faxineiros do shopping aproveitam uma pausa no trabalho para fazer um lanche. São os mesmos que Junior tinha encontrado no banheiro. Quando Danton e Davi se levantam para ir embora, um funcionário da lanchonete aparece para limpar a mesa, contrariado. Seu crachá o identifica como “subgerente”.
Após o lanche, Danton e Davi seguem para o banheiro. Sentados nas privadas de cabines vizinhas, eles continuam a conversa:
– Acho que tô apaixonado, cara. – Suspira Danton, continuando: – Porra, cara. Ela é maravilhosa! E tô achando que hoje vai rolar.
Como Davi não se manifesta, Danton continua a se explicar:
– A gente já tá junto há três meses. Pô, tava mais do que na hora, né? Tudo bem que ela é toda certinha e tal. Mas, porra! Eu tô no osso! Não tô mais aguentando!
Davi continua silente.
– Você tá ouvindo o que eu tô falando, Davi? – Questiona Danton, que não ouve resposta. Preocupado, ele chama novamente pelo amigo, que finalmente responde:
– Danton, tem papel higiênico aí?
Danton pega um rolo de papel e passa para o amigo por baixo da divisória da cabine. Davi devolve a gentileza, jogando de volta para Danton um pacote de camisinhas. Ele entende o recado, e guarda os preservativos na carteira.
Após terminarem o serviço, Davi lava as mãos na pia do banheiro enquanto Danton faz uma ligação com seu celular:
– Alô, Dani?
– Ela não pode atender agora. – Responde uma voz masculina. Danton estranha, mas o sujeito pergunta:
– A Dani tá perguntando quem é.
– É o namorado dela. Me passa ela aí. – Diz Danton, impaciente.
– Não vai dar pra ela atender agora não. Liga daqui a pouco. – Rebate o homem, encerrando a ligação.
Danton fica intrigado, e apoia o celular na pia para lavar as mãos. A torneira não funciona. Bolado com a conversa, ele olha para o amigo, sem disfarçar a cara de bunda.
– O que foi, cara? – Pergunta Davi.
– Liguei pra Dani e um cara atendeu.
– Ela não tá na loja?
– Pois é. O que esse cara estava fazendo com o celular dela?
– Você pode ter ligado errado, um cara atendeu e em vez de falar que era engano aproveitou pra tirar uma onda com a tua cara. Ainda mais depois que você disse que o telefone era da tua namorada.
– Porra Davi! Que tipo de babaca ia fazer isso?
– Eu faria isso. – Responde Davi, enquanto seca as mãos em uma toalha de papel.
Ainda perturbado, Danton lava as mãos usando a mesma torneira que Davi, mas sai do banheiro esquecendo o celular em cima da pia. Depois de se despedir do amigo, ele caminha até a frente da loja onde Dani trabalha, e vê que ela se diverte com as amigas olhando algumas fotos. Danton tenta acenar, mas ela não o vê. Uma das meninas a alerta de sua presença. Dani sorri e sinaliza para que ele aguarde um pouco do lado de fora. Danton se senta num banco do corredor. O tempo passa. As lojas do shopping começam a fechar. Portas são trancadas e luzes apagadas.
Dani finalmente sai da loja com suas amigas. Ela está passando a chave na fechadura da porta quando Danton a aborda, animado. As meninas se afastam, esnobes.
– Liguei pra você. – Diz Danton.
– É? – Responde Dani, sem muito interesse.
– Um cara atendeu. Você emprestou o celular pra alguém?
– Não.
– Bem que eu achei que tinha ligado errado. – Mente Danton, antes de continuar: – Sabe, eu tava pensando. Hoje a gente podia ir lá pra casa. Ver um filminho, tomar um vinhozinho…
– Vinhozinho? Você pirou? Você acha que eu vou perder minha noite de sábado na Netflix? Tem coisa muito melhor pra fazer hoje do que ficar na frente da TV.
Danton estranha a conversa, que não segue conforme o planejado. As amigas de Dani a aguardam no corredor, impacientes, enquanto ela e Danton continuam a discutir de forma áspera. Revoltado com o descaso da namorada, ele resolve fazer um último protesto:
– E quer saber? Eu não quero mais essa porra de bolinha não! Pode ficar com ela! – Grita Danton, nervoso, tentando arrancar a bola de tênis do bolso, sem sucesso.
– Pode ficar. O autógrafo é falsificado. – Rebate Dani, debochada, já se retirando.
Danton finalmente pega a bolinha e olha para o autógrafo, aturdido. “Guga”. Sentindo-se o maior otário do mundo, ele percebe que Dani esqueceu a chave da loja na fechadura. Só de raiva, Danton joga a chave numa lixeira. Muito irritado, ele sai apressado pelos corredores, em direção à saída do shopping. Aquela noite tinha dado errado, muito errado. O que mais poderia acontecer? Subitamente, ele se lembra do celular, tateia os bolsos e para.
Puta que o pariu. Tinha esquecido o aparelho no banheiro.
Quando chove merda, nunca é garoa.