A Última Besta

A Última Besta
"Os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas e tomaram como mulheres todas as que lhe agradaram". Genesis 6:2

– Bram, venha cá.

Não era comum que os anciões me chamassem por esse nome. Quase sempre utilizavam entre si o pronome de tratamento específico que nos distinguia do resto da comunidade. Os demais nem a isso tinham direito. Geralmente usavam apelidos que remetiam a alguma referência natural para o caráter ou tipo físico da pessoa, nomes que eram utilizados apenas enquanto a comparação fosse válida, mas que também podiam durar mais do que uma vida, passando de pai para filho, ou para neto, e assim por diante. Assim eram os guerreiros da tribo, que nunca pareciam preocupados com nada além do que os jogos que criavam para se preparar para a próxima luta.

Eu sempre entrava no salão comum do templo com a mesma expressão de contrição que tinha aprendido por imitação observando os mais velhos. Era um ótimo imitador. Talvez por isso tivesse sido escolhido entre as crianças da comunidade para morar com os sacerdotes, e aprender com eles os signos de pensamento que estou usando neste exato momento. Meu pai e minha mãe continuavam onde sempre estiveram, trabalhando nos campos de centeio. Acho que nem poderiam me reconhecer mais. Da linguagem, não dominavam nada além do que o necessário para a existência cotidiana, como a imensa maioria de nós. Mas eu sempre fui um bom imitador. A memória de minha mãe estava impregnada em mim, e por vezes eu imaginava que aqueles olhares trocados eram mais do que a reverência que os comuns prestavam aos membros das castas superiores.

Afinal, eram os anciões do templo que conduziam os rituais, que liam as estrelas, definiam o tempo de plantar e o tempo de colher, o tempo de matar e o tempo de se fazer a paz. Éramos nós que conhecíamos a linguagem em toda a sua riqueza e complexidade, um tesouro que tínhamos a obrigação de guardar. Desde que tinha sido escolhido, aprendi a lição de que o segredo se protegia a si mesmo, e a nós cabia apenas dar voz ao que não podia calar. Com o poder da linguagem, pessoas eram idolatradas ou punidas, honradas ou segregadas, juntadas em casamento ou afastadas para sempre, do convívio ou da própria vida.

No altar cerimonial, o velho ancião estava deitado com um aspecto pálido. Ao seu lado, os demais murmuravam cânticos, enquanto alguns lhe refrescavam o corpo com panos molhados, e outros procuravam um novo local para a sangria, que era recolhida nos potes de cerâmica que eu estava acostumado a fabricar. O ancião apertou minha mão e fez o sinal de que eu deveria me juntar a eles na cantoria. Era a primeira vez que participaria daquilo. Ficamos ali por quase dois dias, parando apenas em turnos para repartir água e pão, e fazer as necessidades, atos que sempre deveriam ser antecipados pelos códigos de linguagem que eu conhecia de cor, pois tinha treinado a vida inteira para isso.

Na segunda noite, o sangue do velho já quase não pingava, e seus olhos estavam vidrados, como se fixados para sempre no outro lado. Eu não conseguia parar de pensar no rito das palavras finais, e não foi uma surpresa quando um dos anciões decidiu que já era o bastante. Com as mãos, baixou as pálpebras do velho e conjurou os sinais pelo corpo, que indicavam a partida. A partir dali nosso cântico estava encerrado, e outros sacerdotes foram chamados ao templo para conduzir os rituais funerários.

Assim que pude ver a luz do sol novamente, percebi que um sentimento de excitação e alegria difusa tomava conta da comunidade. Não era do tipo que assombrava os sacerdotes, como quando algum símbolo no céu se formava entre o sol, a lua e as estrelas, nem aqueles momentos sempre esperados que antecediam os grandes eventos do calendário. Era um tipo de burburinho profano, coisa típica dos guerreiros quando voltavam da caça com alguma presa diferente do habitual, ou quando anunciavam uma vitória contra as tribos inimigas.

Os anciões não costumavam ecoar esse sentimento, acostumados que estavam aos momentos cíclicos da existência, ouvidos e olhares cansados de saber. Mas eu ainda não me sentia inteiramente como um deles, e desci até a praça para ver que estava acontecendo.

Foi quando percebi. Amarrada a uma corda que prendia seu pescoço a uma vara longa, a besta se debatia enquanto era arrastada por um grupo de guerreiros. Estava ferida, cansada e faminta, mas ainda assim urrava de ódio contra os captores. Atiçando a curiosidade do povo que fazia uma grande roda para vê-la de perto, quase não se podia ver nada do seu semblante, empapado em sangue e desfigurado pelos ferimentos ocorridos durante a caçada.

As histórias contadas pelos sacerdotes davam conta de que houve um tempo em que as bestas predavam os homens, e tomavam as mulheres para si. Mas já eram décadas em que se resignavam a se esconder em cavernas e outros locais de difícil acesso, temendo nossos grupos maiores, mais equipados e bem organizados, expedições inteiras que retornavam com o sangue de seus espécimes mais fortes, e a carne das mais belas.

Alguns de nós tínhamos traços dessa conjunção bizarra. Filhos dos homens com bestas escravizadas, sempre relegados aos trabalhos mais duros na comunidade, lavrando os campos, pastoreando os animais e servindo nas frentes de combate e caçada mais perigosas. Traços que foram diluídos com o tempo, que há muito não dava testemunho dos bandos bestiais que costumavam frequentar o imaginário de tais histórias.

Eu mesmo jamais tinha visto uma delas. Sabia de sua existência, quando emissários do Reino do Leste vieram ter em nossas terras, informando que tinham destruído a grande tribo das montanhas. E também sabia que um dos espécimes costumava aterrorizar as redondezas do lago, por conta de algumas vítimas que tinham sido feitas nos últimos anos.

Pois era esse espécime que enfim tinha sucumbido a um grupo de caçadores. Tomado pela curiosidade, me aproximei o bastante para enxergar seu rosto entre os pelos e coágulos que tornavam sua aparência ainda mais animalesca.

Como sempre acontecia nesses momentos, abriram passagem para o Bram vestido de maneira distinta. Um dos guerreiros ainda tentou me alertar, com sua linguagem rudimentar, do perigo a que estava me expondo. Não era necessário.

Parei a uma distância segura e olhei no fundo dos olhos da criatura, que fez cessar sua revolta por um momento enquanto me fitava. Era um olhar de medo, de raiva, de desprezo. Mas um olhar humano.

Quando o Rei se aproximou e cravou uma lança longa no peito da besta, provocando uma reação de júbilo entre os espectadores daquele espetáculo macabro, meu estômago já estava revirado.

Aquele olhar, cristalizado no tempo, marcou fundo em minha alma. Era um olhar que nos condenava, o último igual, mas outro.

Dali por diante, teríamos de caminhar sozinhos, o que certamente era uma bênção.

E uma maldição.

Marcial Renato

Marcial Renato

Marido da Karin, a mulher mais bonita que já conheci na vida, pai da Ravena (super poderosa), do Henzo (a pronúncia é "Renzo", como o lutador) e da Laura (de olhos verdes). Filho da Alzira, a mulher mais forte do mundo, e do Paulo Roberto, o cara mais maneiro de todos os tempos. Já trabalhei como produtor de TV, Cinema e Internet, fui professor de Comunicação Social e hoje sou servidor de carreira da Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Tenho um mestrado em Literatura e graduação em Publicidade e Propaganda, ambos na UFRJ. Em 2012, escrevi, produzi e dirigi o longa-metragem "Dia de Preto", com Daniel Mattos e Marcos Felipe Delfino, premiado em diversos festivais no Brasil e no mundo. Também sou autor dos livros "Rituais de Casamento", de 2015, junto com a Karin, e "Asgaehart: as invasões bárbaras", lançado em 2018. Duas vezes por ano jogo na lateral direita do time dos nascidos na década de 70 do Vale do Rio Grande (7X). Também gosto de pegar onda no verão, e nas horas vagas escrevo aqui no site da Maxie.

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