O Cão da Pradaria
O cão nasceu na casa da fazenda, do ventre de uma cadela domesticada, completamente ignorante de sua herança selvagem. Foi alimentado e acariciado por humanos, ganhou um nome na língua deles e viveu em ambiente de terna docilidade até tornar-se adulto.
Pela imitação aprendeu a pastorear as cabras, e por muito tempo fazê-lo era para ele uma brincadeira, sendo a satisfação de homens e cães com esse pastoreio como uma bonificação sobre isso. Só muito depois o pastoreio se converteu em trabalho e a satisfação foi substituída pelo hábito.
Mas o tempo seguiu seu passo insidioso que teima em drenar qualquer certeza. O cão já não saía para pastorear sem que antes precisasse ser enxotado do calor da casa, preferindo uma bocada a mais na tigela que o chamado dos pastores.
Sua efetividade como pastor já não era mais alimentada pelo inesgotável prazer de outrora, em dar voltas ao rebanho, mas já emanava da autoridade sobre as cabras, que ele exercia impaciente, buscando o caminho mais atalhado ao resultado. Daí tomou pouco para já não importar se alguma delas desgarrasse e que outro cão ou homem tivesse que buscá-la. Se antes não conseguia deixar que algo assim se passasse, agora lhe era indiferente. Seu ímpeto projetava-se cada vez mais para o término da atividade, e cada vez menos em sua finalidade.
Ao fim do dia, exausto e entediado, o cão não mais procurava companhia. Se deitava sob a árvore e fitava os horizontes sem questionar se buscava algo, mas foi assim que um dia viu os lobos cercando a casa. Deu o alerta que iniciou a perseguição. Os homens corriam por raiva e medo, como é de sua natureza, e lhes bastaria um tiro à distância, que fosse certeiro, ou simplesmente botar medo nas criaturas. O cão, por sua vez, corria por curiosidade e a proximidade era seu objetivo, evitando até mesmo cumprir a meta de afugentar os predadores. O fracasso das buscas apenas reforçaram sua curiosidade e seu fascínio.
De volta à casa, a imagem do cordeiro morto e semi-devorado pelos lobos, a carne fresca e fragrante exposta na grama, o mantiveram desperto até o dia seguinte. A impressão daquela noite ficou tão profunda que o cão parecia anestesiado à percepção de que agora era objeto de orgulho dos homens. Aliviados, os mestres trocaram a crescente impressão de um cão pastor em decadência pela expectativa um guarda em ascensão.
A verdade é que a comida na tigela nunca mais lhe satisfez. O odor de qualquer carne crua e fresca passou a representar para ele o mais alto valor e a imperturbada motivação para mover-se. Passou a rondar o abatedouro, procurando comer sempre a carne mais recente. Reincidiu em roubo e ganhou má fama, dificultando-lhe cada vez mais o acesso. Substituído no pastoreio por outros cães mais previsíveis, passou a dormir de dia e assumir ao crepúsculo sua nova função de sentinela.
A noite era sua nova habitação. Lhe agradava o ar frio, o silêncio e a ausência dos homens. Observava as cabras, desejava a aparição de lobos, perseguia e desentocava lagartos e gambás. Devorava essas presas desajeitadamente, tomado por frenesi, depois voltava o olhar às cabras com sentimento de posse, talvez cobiça.
Os lobos voltaram numa noite morna e sem vento. Dessa vez o cão não soou o alarme. Enquanto os lobos esgueiravam-se pelo outro lado do pasto, o cão imiscuiu-se entre as reses que, por hábito, o ignoravam, e com isso lhe concediam vantagem sobre as feras da floresta. O som de rosnados e capim agitando atraiu sua corrida para as margens do rebanho. Conforme as cabras de olhos arregalados abriam espaço, pode ver três lobos banqueteando sobre o corpo de uma delas. Distraídos pela própria fome, os animais demoraram a perceber sua aproximação. Um deles ensaiou correr dali, mas juntou-se novamente aos outros pelo outro lado da carcaça. O cão notou, logo à sua frente, um naco suculento das entranhas que se espalhavam em torno do local de abate. O aroma penetrou suas narinas e ele precipitou-se sobre a carne sem pensar.
Por um instante, enquanto o sangue quente descia por sua garganta e a imagem dos guarás comendo sob a lua lhe penetrava a alma, chegou a sentir-se como um deles e foi invadido por uma sensação de liberdade e plenitude que nem sequer concebia até então. Logo foi acossado pela loba maior. Bastou um rosnado e a exibição das presas afiadas e claras daquela fêmea selvagem para devolvê-lo ao lugar de medo e hesitação de um cão das pradarias. Correu dali, pelos eriçados e rabo entre as pernas, enquanto lambia do focinho os restos do ato que lhe transformaria para sempre. Assistiu do alto de um talude enquanto a loba voltava à mata densa com seus jovens filhos, e só saiu de lá quando o amanhecer trouxe os homens de volta ao campo.
A expectativa de encontrar no antigo pastor um bom guarda se desfez no coração dos homens. Agora o cão era inútil e ele aprendeu a fazer da inutilidade seu exercício de autodeterminação. Era desprezado pela matilha e os homens, pelas cabras e os lobos. Rejeitava restos, caçava à noite e pouco a pouco passou de um habitante da casa a mero frequentador da fazenda, que limitava-se a rondar solitário quando não perambulava pelas matas. Sumia dali por dias, depois voltava, por força do hábito e falta de destino, mas também porque o rebanho lhe atraía tanto mais quanto mais emagrecia.
A obsessão pelo rebanho era excitada pela fome que o cão se auto-impunha ao afastar-se tanto da casa. Após um desses exílios, em que por dias não encontrou caça, chegou pouco antes da aurora nos limites da fazenda. Ao deparar-se com o rabanho preguiçoso e passivo, foi tomado novamente pelo instinto daquela noite quente e sem vento. Correu em torno da massa de animais como aprendera nos tempos de pastoreio. Ao ver desgarrar-se o mais lento e distraído dos animais, saltou sobre ele furiosamente perfurando-lhe a jugular, rasgando a pele, abrindo a barriga macia e devorando as entranhas. Tudo o que vivera parecia tê-lo conduzido àquele momento perfeito, quando os primeiros raios da manhã iluminaram o sangue intensamente vermelho que jorrava sobre a forra no campo. Sangue da cabra e dele mesmo, atingido por dois tiros de espingarda.