II. O Desafio

II. O Desafio

(Antes: I. O Grande Dia)

No corredor antes de chegar à sala, Zé encontra uma das diretoras, sempre acompanhada pelo seu time de assessoras. É claro que ele não perderia aquela última oportunidade de garantir apoio:

– Diretora Rita, faço questão de destacar a qualidade do último relatório! Meninas, vocês estão de parabéns!

A executiva, uma senhora séria de meia-idade, tenta disfarçar o rubor, mas agradece o elogio. As demais “meninas”, todas elas já na faixa dos quarenta anos, logo cercam Zé Augusto com salamaleques, pois adoravam ou pelo menos fingiam gostar daquele jogo de cena.

Zé entra na sala da coordenadoria realizando o seu ridículo ritual de sempre: antes de entrar no recinto, ele colocava apenas a cabeça para dentro, com a porta entreaberta, e declamava em seguida todo o seu amor pela equipe. O hábito causava extremo desconforto entre a maioria dos colegas, que a partir daquele momento deixavam a descontração típica da manhã para adotar as posturas profissionais empoladas que eram do agrado do chefe. Neuza, a secretária esperta, era sempre a primeira a gargalhar da piada repetida. E gargalhava todos os dias.

Depois de passar na mesa de dois ou três funcionários escolhidos a dedo, via de regra os mesmos bajuladores de sempre, que se sentiam privilegiados pela deferência, Zé se dirigia para o cercadinho no formato de aquário que ele fazia questão de montar num canto da sala, de onde podia controlar todos os movimentos da sua turma. Mas aquele dia era realmente especial. Minutos depois, Neuza comunica ao chefe que o presidente estava descendo para falar com a turma. Nessas horas, Zé promovia uma blitz geral, ordenando que a sala estivesse impecável e que todos recebessem o Big Boss compenetrados no trabalho, olhar fixo no monitor do computador, dedos nervosos no teclado.

Quando o presidente entra na sala, sempre acompanhado dos proprios aspones, a pantomima já está em pleno vapor. Com uma expressão de surpresa e contentamento, Zé sai de seu aquário para ciceronear o Grande Líder, que não perde muito tempo para passar o seu recado:

– Caríssimos! Como todos sabem, hoje teremos um dia muito importante para o Instituto! E eu gostaria de falar pessoalmente, olhando nos olhos de cada um, que o nosso ótimo resultado se deve ao brilhante trabalho de vocês! Vocês são a alma, os olhos, as pernas e os braços dessa organização!

Seguindo um leve gesto pré-combinado por Zé Augusto, todos na sala aplaudem a fala inicial do presidente. Alguns mais efusivamente, enquanto outros quase não conseguiam disfarçar o constrangimento. Após outro sinal, as palmas cessam para que o presidente continue.

– E eu também queria deixar claro para todos vocês, minhas amigas e meus amigos, que este setor não precisa se preocupar com as mudanças. Não importa o que aconteça, eu tenho a certeza de que todos aqui estão preparados para dar mais um passo em direção ao futuro!

Novo gesto, novas palmas. Ainda mais demoradas. O presidente deixa a sala mais do que satisfeito, acompanhado por Zé Augusto, que àquele momento já se encontrava completamente dependurado nas bolas do Líder, babando na gravata. Zé volta para a sala animado. Aquelas palavras eram a cereja do bolo, justamente o que ele precisava ouvir para conter a ansiedade até as três da tarde, horário marcado para o início da fatídica reunião.

Um pouco antes do almoço, porém, Zé Augusto é surpreendido novamente por Neuza, que avisa ao chefe que o presidente marcou uma reunião de emergência com alguns de seus colaboradores mais próximos, incluindo o próprio Zé. Reunião que começaria em poucos minutos.

Apreensivo, Zé faz questão de verificar com a secretária cada um dos nomes chamados para o encontro. Cassinho do Almoxarifado? Sem chance. Depois que “alguém” tinha espalhado o boato de que o pobre homem tinha o hábito de se masturbar nos banheiros, todos o tratavam com escárnio. Melissa chefe de gabinete? Boa candidata, não fosse o processo administrativo que corria contra ela, por supostamente ter empregado como estagiário o primo de um amigo de escola do filho de sua empregada. Denúncia anônima. Paulo Cesar, gerente de TI? Bom garoto, mas tinha pouco mais de 20 anos, e alguns colegas já sabiam que se tratava de um viciado em jogo, e putas. No mês passado, num lance infeliz que comprovava a inexperiência do jovem, PC tinha pedido um dinheiro emprestado ao próprio Zé para cobrir umas despesas imprevistas.

Após conferir os concorrentes de última hora, Zé fica um pouco mais tranquilo. Mesmo assim, trata de subir logo para a antessala do chefe, onde costumava transitar com confiança e naturalidade, cortejando secretárias e dando ordens para garçons e contínuos. No local, ele percebe que Cassinho já estava esperando, suando frio nas mãos. Uma presa fácil para Zé Augusto, que solta uma ou duas piadas de mau gosto sobre onanismo, para constrangimento geral. Assim que Paulo e Melissa chegam ao recinto, todos são conduzidos à sala, ou melhor, ao salão do presidente.

Com um gesto teatral, o Big Boss gira sua cadeira especial, de encosto extraordinariamente alto, na direção dos quatro colaboradores, que não têm nem tempo de se sentar.

– Amigos, surgiu agora uma demanda de extrema importância, que eu não poderia delegar para qualquer um…

Todos se entreolham ansiosos, captando cada palavra como se fosse uma aparição da Virgem.

– Não sei se lembram, mas no fim do ano retrasado, houve uma reforma nessa sala. Meu neto esteve aqui hoje de manhã, e lembrou que havia uma foto de cachorro num porta-retrato que ficava naquela prateleira…

Os olhares se voltam para a prateleira, que agora estava tomada por plantas e esculturas. Nenhum sinal do porta-retrato.

– A questão, senhores, é que ele me pediu para comprar um filhote da mesma raça da foto. Mas eu não lembro qual cachorro era aquele, e nem faço ideia de onde foi parar o tal porta-retrato…

Todos se entreolham novamente, já contando os segundos para sair dali e começar a gincana. O chefe continua sua explanação, sério.

– Cássio, sua missão é simples. Por favor, verifique nos depósitos se ainda temos esse porta-retrato em nosso poder. Melissa, tente achar o lugar que nos vendeu a peça. Eles podem ter outra igual. Paulo Cesar, veja nos arquivos das câmeras de segurança daqui da sala se ainda há registros da época. E, José Augusto… Chamei você aqui porque se trata de uma questão absolutamente estratégica. Compreenderam?

Todos tinham compreendido. Missão dada era missão cumprida.

(Continua: III. A Gincana)

Marcial Renato

Marcial Renato

Marido da Karin, a mulher mais bonita que já conheci na vida, pai da Ravena (super poderosa), do Henzo (a pronúncia é "Renzo", como o lutador) e da Laura (de olhos verdes). Filho da Alzira, a mulher mais forte do mundo, e do Paulo Roberto, o cara mais maneiro de todos os tempos. Já trabalhei como produtor de TV, Cinema e Internet, fui professor de Comunicação Social e hoje sou servidor de carreira da Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Tenho um mestrado em Literatura e graduação em Publicidade e Propaganda, ambos na UFRJ. Em 2012, escrevi, produzi e dirigi o longa-metragem "Dia de Preto", com Daniel Mattos e Marcos Felipe Delfino, premiado em diversos festivais no Brasil e no mundo. Também sou autor dos livros "Rituais de Casamento", de 2015, junto com a Karin, e "Asgaehart: as invasões bárbaras", lançado em 2018. Duas vezes por ano jogo na lateral direita do time dos nascidos na década de 70 do Vale do Rio Grande (7X). Também gosto de pegar onda no verão, e nas horas vagas escrevo aqui no site da Maxie.

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