V. A Indicação

V. A Indicação

(Antes: IV. Missão Cumprida)

Assim que retorna à sala, Neuza avisa ao chefe que a reunião iria começar em cinco minutos. Não qualquer reunião, mas “a” reunião. Zé Augusto estava faminto, mas nada, absolutamente nada, poderia tirar seu foco daquele momento. Como ele próprio gostava de dizer, estava na cara do gol. No banheiro, Zé molha o rosto, dá um tapa no visual e aplica umas borrifadas de perfume.

Como fazia sempre nestas ocasiões, Zé vai direto para o gabinete do presidente, onde ficava aguardando o Grande Líder para seguir junto com ele ao local da reunião, de forma a passar uma ideia de intimidade. Tinha acabado de sair de lá, e por isso não percebeu quando Melissa chegou com uma sacola cheia de porta-retratos de cachorro, sendo rispidamente humilhada pelo chefe. Ao cruzar com a Chefe de Gabinete, que se esforçava para não borrar a maquiagem devido ao choro, Zé Augusto não consegue disfarçar o sorriso de superioridade olímpica.

O presidente então sai da sala, acompanhado por uma figura que Zé já tinha visto. Puta que o pariu! Era o deputado. Líder da comissão na câmara, personagem habitual do noticiário político, uma raposa felpuda do legislativo, onde seguia em seu terceiro ou quarto mandato. Zé Augusto não podia sentir mais orgulho de ser quem era. Seu querido chefe era foda, com F maiúsculo. Aquela presença excelentíssima era a cereja do bolo para o seu grande momento.

Rodeados por uma comitiva de assessores, secretárias e subalternos, Zé entre eles, o presidente e o deputado seguem para a reunião. Zé Augusto puxa assunto com alguns deles, sempre atento às palavras e movimentos do Líder. Era sempre o primeiro a rir das piadas, a fazer uma observação inteligente, um comentário jocoso ou trazer um dado complementar às falas do presidente. Um verdadeiro campeão da bajulação. Nesse aspecto, ninguém podia competir com ele.

No salão da diretoria, todos os demais convidados já estavam esperando o Big Boss, último a chegar nos eventos. Assim como Zé, todos ficam impressionados com o ilustre convidado do presidente, que abre os trabalhos com pompa e circunstância:

– Meus amigos, minhas amigas. Companheiros e companheiras dessa longa jornada. Penso que todos aqui têm a exata noção da grande importância do dia de hoje para o Instituto. Uma data tão marcante que contará com a augusta participação de um dos mais combativos parlamentares da república, um verdadeiro guardião das boas práticas e dos avanços inclementes que essa legislatura tem conquistado para todos os cidadãos deste país, quiçá de todo o mundo!

Os demais participantes não conseguem conter as palmas ante uma introdução tão potente. Zé Augusto chega a assobiar de júbilo. O presidente faz um gesto para conter a euforia, mas também não disfarçava o contentamento. Após mais alguns minutos de palavrório meloso, ele passa solenemente a palavra para o deputado, que discursa por quase uma hora para uma plateia bovina. Ao final, todos também aplaudem efusivamente as mais diversas platitudes lançadas pelo congressista, como se fossem grandes pensatas, sempre em tom triunfalista.

Um dos assessores conduz a pauta de serviço da reunião, que se detém longamente na discussão do slogan para a próxima campanha de utilidade pública promovida pelo Instituto, além de aprovar rapidamente a dispensa de licitação para o fechamento de alguns contratos. Após um debate acalorado sobre o melhor acróstico para o nome do novo sistema de gestão de acervo da tesouraria, discussão vencida por Zé Augusto, finalmente tinha chegado o último e mais decisivo item da pauta: a nomeação do novo diretor.

– Amigos, amigas, companheiros, companheiras. Todos aqui devem estar ansiosos para este que certamente representa um passo importante não só para o nosso Instituto, mas principalmente no sentido da valorização do nosso capital humano, da nossa gente, da categoria dos servidores públicos que trabalham dia após dia pela construção de uma grande nação!

As palavras do presidente eram como música para o ouvido de Zé, que sorvia cada uma delas como colheradas de um manjar dos deuses, preparado especialmente para ele. O coração palpitando, um calafrio correndo pela espinha, o estômago colando na garganta. Ou seria a fome?

– Justamente por conta de tudo isso, meus amigos e minha amigas, é que eu tenho agora mais do que o prazer, mas também a honra de anunciar o nosso querido José Múcio, assessor do nobre deputado na comissão mista da capital, como o novo diretor do nosso Instituto!

(Uma pausa para Zé Augusto se recuperar daquele soco na ponta do queixo)

Não tinha como dar ruim. Mas deu.

A visão de Zé Augusto fica turva, os ouvidos não conseguem mais captar o áudio ambiente, que a esse momento já era tomado por mais aplausos, congratulações e sons de tapinhas nas costas do mais novo diretor. Atônito, embasbacado, desesperado, incrédulo, Zé sente o mundo girar à sua volta, as pernas perdem a força, e ele desaba da cadeira para o chão da sala, provocando uma comoção geral entre os presentes. As secretárias correm para socorrê-lo, enquanto o presidente já dispara aquele seu olhar característico de reprovação, enquanto cochicha algo para o deputado, que assiste incrédulo àquela cena constrangedora protagonizada por Zé Augusto.

Naquela fração de segundo, antes de cair inconsciente, um turbilhão de questionamentos arrastava Zé para o canto mais sombrio de seu espírito dilacerado. Quem era aquele Múcio? De onde surgira? Como vivia? Quais credenciais tinha? Jamais tinha ouvido falar daquele sujeito, que estava completamente fora de seu radar. Num estalo, Zé Augusto teve o insight de que aquela devia ser justamente a maior habilidade de seu rival até então oculto. José Múcio era um ninguém. Não tinha voz, nem presença, nem opinião. Mas tinha padrinho.

E foi naquele mesmo relance que Zé percebeu a outra face da sua triste epifania. Subitamente, ele compreendia que era um merda com M maiúsculo. Toda sua dedicação, todo o esforço, todas as humilhações sofridas ganhavam outro sentido. Na verdade, Zé Augusto era o mais miserável dos homens sobre a Terra. No fundo, era motivo de piada entre os colegas. Não tinha enganado ninguém.

Era um merda. Um MERDA, com todas as letras maiúsculas. Nunca era demais repetir.

(Continua: VI. Gran Finale)

Marcial Renato

Marcial Renato

Marido da Karin, a mulher mais bonita que já conheci na vida, pai da Ravena (super poderosa), do Henzo (a pronúncia é "Renzo", como o lutador) e da Laura (de olhos verdes). Filho da Alzira, a mulher mais forte do mundo, e do Paulo Roberto, o cara mais maneiro de todos os tempos. Já trabalhei como produtor de TV, Cinema e Internet, fui professor de Comunicação Social e hoje sou servidor de carreira da Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Tenho um mestrado em Literatura e graduação em Publicidade e Propaganda, ambos na UFRJ. Em 2012, escrevi, produzi e dirigi o longa-metragem "Dia de Preto", com Daniel Mattos e Marcos Felipe Delfino, premiado em diversos festivais no Brasil e no mundo. Também sou autor dos livros "Rituais de Casamento", de 2015, junto com a Karin, e "Asgaehart: as invasões bárbaras", lançado em 2018. Duas vezes por ano jogo na lateral direita do time dos nascidos na década de 70 do Vale do Rio Grande (7X). Também gosto de pegar onda no verão, e nas horas vagas escrevo aqui no site da Maxie.

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