Os Inúteis Conselhos dos Vitoriosos

Os Inúteis Conselhos dos Vitoriosos

Faltam livros sobre o segredo do fracasso.

É intrigante a proliferação de textos e vídeos inspiracionais ou motivacionais, geralmente protagonizados por pessoas muito bem sucedidas em suas respectivas áreas de atuação, privilegiadas com um largo capital de credibilidade e audiência sem o qual, aliás, seus conselhos nem chegariam ao conhecimento dos demais mortais. Nessas peças, que às vezes são trechos de entrevistas, o sujeito, uma verdadeira ilha cercada pelo mar agitado da angústia alheia, tenta como pode compartilhar com o público as pistas em sua própria trajetória que possam servir de guia ou bússola para que a multidão perdida que o cerca encontre o caminho para o próprio sucesso.

A primeira coisa que precisamos indagar é o porquê dessa demanda e dessa pressão curiosa exercida sobre tais personagens, para que iluminem os demais com alguma resposta que os demais, primeiro, supostamente não têm e, finalmente, imaginam que tais luminares terão. O que se quer, naturalmente, é algo simples: que o vitorioso revele o “caminho das pedras” para a realização de sonhos, aspirações e ambições (quase sempre apenas no nível do ego) dos indivíduos em geral.

Dessa dinâmica depreendemos algumas coisas. Evidencia-se que há, de fato, uma verdadeira multidão de gente que tem aspirações, sonhos e ambições pessoais não desprezíveis, difíceis de atingir e portanto fonte de angústia e ansiedade para essas pessoas. Ato contínuo, parece também claro que essa miríade de gente está completamente perdida no caminho tortuoso e caótico para a realização dessas aspirações. Em resumo, há uma nação de gente tentando, mas não conseguindo, realizar seus projetos e ambições de forma minimamente satisfatória, ou ao menos está claro que essas pessoas não acreditam que estão avançando de forma consistente nessa direção.

Não falta quem, no meio da ciência social e da psicologia, questione* essa auto-imposição, criada por uma sociedade patologicamente vaidosa e individualista, da ideia de que uma vida significativa deve ser coroada por feitos extraordinários e que a métrica dessa conquista é a quantidade de gente de reconheça expressamente o valor de tais feitos, ou seja, da quantidade de gente que há de invejar tal indivíduo e desejar dele também uma dica sobre como chegar à fama, fortuna e sucesso. Isso resultaria num inevitável esquema de pirâmide, já que é simplesmente natural que apenas uma pequena minoria possa gozar do reconhecimento de muitos outros. Poucos serão extraordinários e todos os outros serão ordinários. Trata-se praticamente de uma lei natural das estruturas sociais. A pressão sobre todos para que sejam parte dos poucos é no fundo uma condenação coletiva à depressão.

* https://www.youtube.com/watch?v=wLt24P8-cCs&list=PLghVZz6yFugwar8fiOwejM0ZTW0xwnKTz&index=19&t=0s

Claro que contra tal estrutura histórica levanta-se todo tipo de sombra, ressentimento e leviatã que se possa imaginar. Desde o mito fundador de Abel e Caim até um modelo ideológico de inspiração marxista, a humanidade criou infinitas maneiras de buscar a pacificação da insatisfação inata do indivíduo com o bem que lhe cabe em comparação ao bem que lhe poderia caber ou o que cabe a outros. A servidão foi uma dessas formas, transmitindo a ideia de que a capitulação e a resignação são de certa forma divinas.  A emergente ideologia sombria do justiceiro social é outra forma, alimentando a noção de que, se não é possível a todos acessar o extraordinário, então é preciso garantir que ninguém o acesse, pois este deve obrigatoriamente ser fruto de usurpação. Por fim, as sociedades liberais capitalistas modernas se fundam na missão de deixar desembaraçado, da melhor maneira possível, o caminho entre qualquer indivíduo e as mais altas possibilidades de sucesso e privilégio, sendo que o caminho nobre para essa conquista é um conceito absolutamente fantasmagórico: o mérito.

Voltamos assim ao ponto de partida, já que o mérito é atribuído por outros e será tão maior quanto mais outros lhe atribuírem e, claro, os méritos reconhecidos por aqueles no topo da pirâmide social têm muito maior peso que os reconhecidos por aqueles em sua base.

É evidente, portanto, que a possibilidade de alcançar tais conquistas e posições não depende de nenhuma informação que possa ser distribuída pelo sujeito que foi bem sucedido. Se o fosse, o sucesso seria uma commodity, algo que já esclarecemos que seria contraditório se fosse possível. O mistério portanto permanece: porque as pessoas buscam conselhos para o sucesso advindos dos bem-sucedidos e por que os bem-sucedidos seguem dando esses conselhos?

A primeira pergunta é talvez mais fácil de ser respondida. As pessoas tendem a crer como algo natural e evidente que não deve haver alguém melhor que o vitorioso para revelar o que é necessário para obter a vitória. Tanto que é comum nos dias de hoje a desqualificação e difamação da assustadora quantidade de “coaches” e vendedores de auto-ajuda que não parecem ter realização alguma a exibir em suas próprias trajetórias. As pessoas perguntam: o que um perdedor pode saber sobre o que eu preciso para vencer? E com isso vão atrás de saber o que se passou para que o bem aventurado tenha logrado êxito em suas próprias ambições. Mas claro que, ao buscar os conselhos do sucesso, as pessoas que acreditam nele estão naturalmente realizando os rituais que o mantém como um mito vivo, ou seja, estão alimentando o sucesso e emprestando ao bem-sucedido a mesma credibilidade que desejam ter mas acham que não sabem onde conseguir. É o jogo tautológico clássico: o reconhecimento do bem-sucedido é dado a ele por todos nós e portanto ele tem rigorosamente nada a nos oferecer, uma vez que só possui o que recebe da multidão.

A profunda contradição desse jogo então se revela. O bem sucedido, especialmente aquele que busca compartilhar a própria trajetória como exemplo e modelo para grandes realizações, não faz a menor ideia de como ou por que chegou ao sucesso. No livro “Em Águas Profundas” (Catching the Big Fish), David Lynch narra como ele fez um filme e depois alguém pagou pelo próximo e “depois disso o caminho se abriu”. A verdade, talvez dolorosa demais para ser admitida em público, é que a imensa maioria das pessoas de sucesso simplesmente tropeçou na própria vitória através do mecanismo conhecido popularmente como “estar no lugar certo na hora certa” ou, dito de outra forma, recebeu um “adiantamento” de credibilidade vindo em geral de alguém no topo da pirâmide social, sem que tenha demonstrado ex-ante um mérito particularmente extraordinário para tanto, e nem poderia, como todos os derrotados já sabem. Essa parte pouco glamourosa da trajetória de conquistas do passageiro da primeira classe na sociedade contemporânea nunca será narrada num conteúdo motivacional e disso podemos ter certeza, pois põe a perder toda a mitologia heroica que justifica o fato de que todos acreditamos que a vida só faz sentido com grandes realizações ao mesmo tempo em que nos organizamos para que apenas 1% de nós as atinja. A prova, admissivelmente anedótica, disso é que na biografia das pessoas mais destacadas há quase sempre uma incômoda omissão. Há um momento anterior ao sucesso e, então, há o sucesso, como se ele viesse de um bilhete de loteria. Essa omissão é constrangedoramente onipresente em centenas ou milhares de biografias de pessoas de grande destaque em qualquer área.

Na outra ponta, os medíocres e derrotados que se arvoram no papel de “coaches” cometem um erro ainda pior. Reproduzem o discurso e as belas narrativas heroicas das pessoas de sucesso, inclusive mantendo a omissão sobre o momento em que o medíocre é promovido ao sucesso por uma força completamente externa a ele. Essa reprodução rústica de um discurso que lhes é alheio é a exata razão pela qual o “coach” é hoje uma das figuras mais ridicularizadas de nossa sociedade. O problema não é, de forma alguma, ser um medíocre como todos nós, mas o fato de que ele tenta se passar por um sujeito bem-sucedido ou detentor do segredo destes (segredo que eles conhecem).

Não quero dizer no entanto que seja inválido o esforço para ajudar as pessoas a se orientarem em seus esforços, em geral frutos de um impulso culturalmente inevitável, no sentido de buscarem da melhor forma suas mais ambiciosas realizações, ou de viver uma vida pautada pelo alinhamento entre suas decisões e seus sonhos. Esse serviço é verdadeiramente necessário e hoje mais do que nunca. Hordas de pessoas sentem-se esmagadas entre a absoluta mediocridade e vazio de suas vidas cotidianas e os sonhos estelares que nossa cultura estimulou que cultivassem em seus espíritos. Essas pessoas precisam de conciliação urgente e a auto-ajuda, como qualquer outro gênero de comunicação, pode ser nobre, útil e transformadora.

Nesse sentido, muito ajudaria se os bem sucedidos parassem de omitir o papel do acaso e do privilégio obtido através de relações e acontecimentos absolutamente pessoais nos momentos cruciais para que tivessem acesso aos recursos humanos, sociais e financeiros necessários à realização de seus feitos mais extraordinários ou ao efetivo reconhecimento destes. Nada nos faria bem maior do que ouvir de um luminar a admissão de que este não faz a menor ideia do que é necessário para obter sucesso, e que ele em nada pode ajudar os outros a obtê-lo a não ser, é claro, promovendo-os pessoalmente.

Da mesma forma faria muito bem a emergência de um novo tipo de “coach”, que ao invés de fingir sucesso e simular ensinar o caminho da vitória, fosse alguém disposto a compartilhar sua longa experiência na arte de suportar a falta desse tipo de sucesso, sem deixar-se esmagar por ela e buscar uma outra natureza de realização pessoal. Precisamos de mentores que digam claramente que as pessoas de sucesso não têm conselhos úteis a oferecer especialmente sobre realização pessoal e quanto mais sobre felicidade. Nós que apenas lutamos para não nos entregarmos à completa insignificância só temos uns aos outros e nada nos pode ser mais precioso do que a experiência compartilhada desse caminho tão pouco promissor.

Vencer ou perder é fácil e ninguém precisa ser ensinado a respeito disso. A lição a ser aprendida por todos é sobre como não sucumbir ao completo desespero e seguir na vida com esperança e fé, traçando um caminho que terá valido a pena percorrer, na vitória ou na derrota.

Daniel Mattos

Daniel Mattos

Nasceu em Petrópolis, em julho de 1975 e recebeu o nome de Daniel Vidal Mattos. Desde então está em busca de respostas sobre o que é ser Daniel Vidal Mattos, nascido em Petrópolis em julho de 1975. Não se parece com a foto aqui publicada.

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