Sagansky Moment
Fundamentos econômico-financeiros do segmento de vídeo por demanda e seu impacto recente nos acordos contratuais entre criadores, produtores e agregadores.
Por: Daniel Vidal Mattos
Revisão: Marcos Felipe Delfino e Marcial Renato de Campos
Em junho de 2022, em evento promovido pela NAPTE (National Association of Television Program Executives), o influente produtor de TV e investidor Jeff Sagansky fez um discurso aos seus pares que gerou grande repercussão e disparou uma discussão que seguia se desenvolvendo enquanto este artigo era escrito, três semanas depois.
Em sua manifestação, Sagansky protestava em termos veementes contra o modelo de negócio adotado pelas grandes plataformas de vídeo por demanda (Streaming/VoD) ao contratar com produtores independentes a produção de conteúdo inédito (filmes, séries e programas) para seus catálogos on-line.
A indignação se dirigia à preferência (quase exclusiva) dessas grandes empresas por contratos do tipo “cost plus” (também conhecido como “buyout”) em detrimento do tradicional “backend deal” praticado há décadas no mercado de projetos e no qual há participação nos lucros por parte da empresa produtora, assim como dos chamados “talentos” (roteirista, diretor, elenco principal), também conhecidos como cachês “above the line” (porque são os maiores cachês de uma produção e costumam ser negociados a preço fixo, independentemente da quantidade de dias de trabalho).
Sagansky argumenta que os acordos de compra praticados pelas plataformas farão com que as obras “sejam licenciadas, relicenciadas e vistas em todos os cantos do mundo da maneira que apenas a revolução digital torna possível”, enquanto criadores e produtores desses programas “sãos pagos apenas uma vez, adiantado, 10 ou 20% a mais do que sua taxa normal de produtor e nunca mais seriam pagos por todos esses bilhões de visualizações, toda essa receita de relicenciamento, toda essa receita de publicidade incorporada”.
Para entendermos melhor a discussão, vamos começar definindo os elementos em jogo:
Conteúdos audiovisuais são obras de arte autorais, mas o caminho desde a ideia até o produto acabado é longo e custa muito dinheiro. Por isso, começam como projetos, compostos por roteiros, argumentos ou “bíblias” (a parte propriamente artística e criativa do projeto) e planos para sua execução (orçamento, desenho de produção, contratos com talentos etc.). Essa fase inicial é a fase de desenvolvimento e, durante sua vigência, o material circula por um mercado invisível aos olhos do consumidor: o mercado de projetos. Nele, autores apresentam suas ideias geralmente a produtores que, caso se interessem, investem no desenvolvimento de planos e, por sua vez, apresentam o projeto aos agregadores, grandes empresas que financiam a produção e depois comercializam os filmes e séries no mercado consumidor. O atrito exposto por Jeff Sagansky acontece justamente nesse mercado de projetos.
Nesse tipo de trajeto, a iniciativa é primeiramente do artista e em seguida do produtor, cabendo ao agregador receber propostas e selecionar aquelas que prefere financiar. Há outros casos, em que o agregador encomenda ao artista a criação de um produto específico e depois contrata um produtor para executá-lo. Esse segundo caso é chamado de “commissioning”, enquanto o primeiro é chamado de “Spec” (abreviatura de speculative) porque é um projeto criado sem que haja previamente uma promessa de compra. Portanto é um projeto “especulativo”.
Note que, em toda negociação de projetos, há dois componentes: direitos e serviços. Os diferentes profissionais e empresas envolvidas são remunerados porque têm direitos de propriedade intelectual, mas também porque executam seu trabalho especializado no processo de construir aquela propriedade. O roteirista, por exemplo, recebe valores para ceder os direitos de produção do seu texto, mas também recebe para fornecer seu serviço escrevendo as várias versões necessárias para chegar ao roteiro final. O produtor é remunerado pelos direitos de reprodução do filme, mas também recebe pelo serviço de produção em si. Na prática, essas duas remunerações acabam se confundindo e é justamente essa confusão que provoca boa parte do problema gerador de conflitos, como o caso de que estamos tratando.
Do ponto de vista dos direitos e da propriedade sobre o produto, incialmente tudo se resume ao direito autoral do criador artístico, o qual não pode ser vendido pois autoria é um fato, não um bem. O que pode ser vendido é o copyright, ou o direito de utilizar comercialmente a criação autoral. Por exemplo, o autor pode vender ao produtor o direito de produzir um filme a partir do roteiro por ele escrito, e depois o produtor pode vender ao agregador o direito de exibir o filme. Em todo caso, é a negociação de direitos (portanto sua cessão ainda que parcial) que impulsiona a ideia na direção de se concretizar, já que cada novo parceiro agregado à empreitada merece ser recompensado por seus esforços em levá-la à frente. De fato, só há duas formas possíveis de remunerar os participantes: pagá-los diretamente por um serviço ou torná-los sócios no projeto, com participação nas possíveis receitas futuras. Então a regra é simples: se você tem dinheiro, contrate o serviço; se não tem, compartilhe direitos.
Um contrato “cost plus” é um acordo em que o produtor (e/ou demais talentos) é pago por todas as despesas para execução do projeto que ele propõe, somadas ao pagamento de um valor adicional que corresponde ao lucro, ou “prêmio”. Esse tipo de acordo entre produtores e agregadores de conteúdo audiovisual também costuma ser chamado de “buyout”, um termo emprestado do mercado financeiro e que se refere aos casos em que o investidor adquire uma porção majoritária ou total em um empreendimento, resultando na perda do controle de gestão por parte do investido. Em resumo, o investidor “compra a saída” dos atuais controladores. O que está sendo comprado, vale notar, são os direitos de propriedade, o que não significa que produtor e talentos não continuem exercendo seus papeis na produção, remunerados por seus serviços. Eles apenas não têm mais controle de propriedade, o que significa que renunciaram à palavra final nas decisões artísticas e comerciais do projeto. Em tese, o agregador pode inclusive demiti-los e seguir com o projeto sendo executado por terceiros.
Já o “backend deal” é um acordo em que o agregador investe na produção do projeto, mas adquire uma parcela limitada dos direitos de propriedade ou de exploração comercial desta. Nesse tipo de acordo, em que o agregador se torna mais um sócio no negócio, o produtor ou talentos farão jus a uma participação nas receitas de comercialização da obra no futuro. Naturalmente, o backend deal acontece quando o agregador não cobre todas as despesas de desenvolvimento e produção do projeto, cabendo ao produtor bancar o restante dos custos com recursos próprios ou de outros parceiros.
Para entendermos em que implicam as diferenças entre esses dois modelos de negócio, precisamos usar o conceito de “diferimento”. O termo, de origem contábil, se refere a uma negociação no tempo. Em resumo, trata do adiantamento no pagamento por um bem ou serviço que será recebido ou usufruído no futuro. Esse objeto futuro é então considerado um “ativo diferido”, ou seja, um bem patrimonial, o que faz com que seu custo não seja considerado como uma despesa.
O que leva alguém a pagar adiantado por um ativo que ainda não está trazendo benefícios? A resposta para isso está em outro termo técnico sobre negociações no tempo: “arbitragem”. Esta se refere ao exercício de especular sobre a diferença entre o valor futuro e o valor presente de algo. Ao fazer o diferimento, quem paga adiantado está arbitrando um valor mais alto no futuro para aquilo que ele está adquirindo agora. Em termos mais simples, você paga adiantado quando tem um desconto, ou seja, quando acredita que está pagando menos agora do que pagaria depois. Empresas fazem diferimentos quando acham que não há um uso mais lucrativo para seu dinheiro em caixa do que o desconto que pode ser obtido pagando adiantado. No caso dos acordos cost plus, não é diferente. O agregador está pagando adiantadamente, arbitrando o valor provável que teriam as participações futuras do produtor e dos talentos. Já nos acordos backend é o produtor e o talento que abrem mão de recursos no presente com expectativa de receber mais no futuro.
Quem arbitra, especula e, portanto, corre riscos. Quando o agregador paga adiantado pelos lucros do produtor ele corre o risco de aumentar seu prejuízo caso a produção não seja bem recebida pelo público. Da mesma forma, quando o produtor ou o talento preferem participação nos lucros em lugar do pagamento adiantado, estão correndo, eles mesmos, os riscos do insucesso.
A diferença entre os dois modelos de negociação de projetos é, portanto, uma questão de cálculo da relação entre risco e retorno em dois pontos do tempo: o presente e o futuro. Como diz a expressão popular, trata-se de trocar o certo (valor presente) pelo duvidoso (valor futuro). Naturalmente, o valor futuro é uma incógnita e é precisamente por isso que esse valor precisa ser primeiro arbitrado e depois “trazido a valor presente”, ou seja, aplicado sobre ele um desconto equivalente, no mínimo, aos juros de mercado compostos que seriam recebidos entre agora e aquele momento futuro.
Estabelecidos os elementos estruturantes do racional econômico que fundamenta os modelos de negócio em discussão, podemos agora mapear as possíveis motivações para o posicionamento de cada agente de mercado nessa disputa.
Não seria prudente limitarmos o exame do problema a questões estritas de finanças e contabilidade. Há outras propriedades na atividade de cada agente que podem influenciar suas preferências. É natural por exemplo imaginar que, do ponto de vista dos grandes agregadores de vídeo por demanda, o modelo backend traga alguns inconvenientes de natureza operacional. Programadoras de TV e distribuidoras de cinema operam dentro de limites territoriais rígidos. Para essas empresas não valeria a pena pagar por direitos que abrangem territórios fora de seu alcance. Já para os produtores, seria valioso o poder de negociar outros territórios de forma independente. Nesse caso, os contratos que mantêm algum controle pelo produtor, servem aos propósitos de ambas as partes. O mesmo não pode ser dito dos operadores globais de vídeo por demanda, para os quais não há espaço para obtenção de descontos pela exclusão de territórios no acordo. Além disso, a própria natureza de catálogo do portfólio dessas empresas faz com que a limitação de prazo também não pareça tão atrativa quanto é para uma distribuidora de cinema, que não tem utilidade alguma para um filme após algumas semanas de sua estreia. Por fim, ainda que inseridas em grupos globais de comunicação, os canais de TV com participação em produções executam o ciclo de comercialização do conteúdo através de processo de sucessivos licenciamentos, mesmo para empresas afiliadas. Nesse modelo, faz sentido remunerar o produtor e talentos pari passu, lógica que não se aplica ao streaming. Diante disso, caberia mesmo perguntar que receitas futuras seriam essas, reivindicadas por Sagansky, no modelo do vídeo por demanda. No caso dos serviços por assinatura, as receitas recorrentes são diluídas no catálogo e não poderiam ser facilmente atribuídas a uma obra específica, para que a justa participação pudesse ser periodicamente distribuída. Já naqueles serviços de natureza transacional, em que o consumidor paga pelo título, o modelo de participação na receita já é amplamente adotado. A única outra forma de exploração comercial subsequente que poderia ser utilizada por um produtor detentor do controle e direitos seria resultante da expiração de um contrato com o agregador por prazo determinado. Sagansky, em sua argumentação, deixa dicas de como ele imagina essa abertura de alternativas comerciais aos detentores originais dos direitos da criação, quando sugere a ressurreição de uma regra regulatória dos anos 70, a Financial Interest and Syndication Rule (fin-syn), criadapara coibir o que classificou como “comportamento anticompetitivo coercitivo”. Segundo ele, graças à regulação, “os quarenta anos seguintes foram realmente a idade de ouro da propriedade do produtor”.
Para compreendermos melhor as implicações disso, lançaremos mão do que conhecemos sobre a história da indústria audiovisual e suas disputas em torno de estruturas negociais. A discussão em tela não é exatamente nova, tampouco é o modelo praticado pelas plataformas. Nos anos 70, o mercado audiovisual dos EUA passou por um processo de rearranjo econômico radical do qual fez parte uma importante mudança regulatória chamada de Financial Interest and Syndication Rule (fin-syn) e que, segundo o ponto de vista dos produtores, teria resultado num período de predomínio do chamado cinema independente, que ficou conhecido pela alcunha New Hollywood, em oposição ao chamado Studio System.
Claro que o cinema independente já existia antes disso, tanto nos EUA (tendo a United Artists, encabeçada por Charlie Chaplin, como seu maior símbolo) quanto na Europa, onde as vicissitudes da guerra motivaram uma forma de produção bem diferente do modelão Studio System, introduzindo filmagens externas em locações, equipes enxutas e o diretor-autor. Essa vertente altamente politizada redefiniu a estética do cinema na segunda metade do século XX, incluindo movimentos esteticamente radicais como o neorrealismo italiano e o Cinema Novo no Brasil.
A Fin-Syn Rule foi uma regulação criada em reação a um fenômeno similar ao que estamos experimentando hoje. Até o fim dos anos 60, a TV tinha uma relação com o cinema muito mais distante do que nos acostumamos, devido a limitações tecnológicas. Sem meios eletrônicos de gravação e por conta da baixa qualidade de transmissão e recepção das imagens, a TV era um meio de comunicação exclusivamente ao vivo, muito mais um rádio com imagens do que um cinema em casa. Com a chegada do videotape e a melhoria das condições técnicas, tudo isso mudou, e em poucos anos a TV não apenas se tornou um veículo de exibição de filmes como passou a produzir conteúdo gravado e editado em um modelo de criação e produção muito similar ao da indústria cinematográfica. Produtores e talentos do cinema começaram a fazer trabalhos para as grandes redes de TV dos EUA (ABC, CBS, NBC), mas logo se depararam com um modelo de negócio diferente do que estavam acostumados. Altamente capitalizadas por fluxos estáveis de caixa vindos de grandes contratos de publicidade, as grandes redes de TV não estavam expostas, como os estúdios de cinema, à volatilidade de receitas causada pelos caprichos do público das salas. Além disso, eram empresas altamente verticalizadas, acostumadas a ter total controle sobre o produto, desde a concepção até o fim de sua vida útil no mercado, diferente dos estúdios, que abandonaram suas estruturas verticais depois dos Paramount Cases em 1948 (outro evento regulatório, que proibiu os estúdios de controlar redes de salas de cinemas). Esses dois fatores, que estimulavam os estúdios a dividir riscos e lucros com produtores e outros parceiros, por sua vez estimulavam as TVs, com seus gordos caixas, a simplificar o negócio e bancar 100% dos custos das produções, absorvendo todo o risco de um eventual mau resultado, mas ficando também com todas as receitas posteriores.
Notem que, aqui, chegamos ao cerne da questão, à qual voltaremos em seguida. O fato é que os grandes produtores não gostaram do modelo imposto pelas redes de TV, assim como não estão gostando agora do modelo imposto pelas plataformas digitais, e chegaram ao ponto de litigar sobre o assunto.
O resultado foram as “Financial Interest and Syndication Rules” ou simplesmente “fin-syn rules”, um regulamento imposto em 1970 pela Comissão Federal de Comunicações (FCC), agência reguladora dos Estados Unidos equivalente às ANATEL e ANCINE brasileiras. As regras visavam evitar um oligopólio das grandes redes de televisão, proibindo-as de ter maioria nos direitos patrimoniais dos conteúdos de programação veiculados no horário nobre. Com isso, as TVs estavam limitadas a pagar por um licenciamento, ou seja, apenas pelo direito de exibir aquele conteúdo por um período determinado ao fim do qual o produtor estava livre para negociar com outros licenciantes.
Muitos afirmam que as regras Fin-Syn trouxeram uma era de ouro para a produção de televisão independente, mas há quem argumente que essas mesmas regras dificultaram o acesso das produtoras independentes ao mercado de TV, porque as empresas menores, sem o investimento das redes, não conseguiam estruturar o restante do financiamento das produções.
Enquanto durou, a regulação Fin-Syn gerou controvérsia e acabou sendo relaxada gradativamente na década de 1980 até ser oficialmente abolida em 1993, depois de já ter caído em desuso. Com o fim da regulação, não tardaria para que os grandes estúdios de cinema entrassem com força no negócio de TV e os dois mercados convergissem na multiplicidade de canais possibilitada pelo modelo da TV a cabo (que contornava a limitação de número de canais do espectro de radiofrequência).
O que a história nos ensina é que o notável desenvolvimento da indústria audiovisual dos EUA sempre foi marcado por ciclos de regulação e desregulação. Nos períodos de desregulamentação, as empresas incumbentes da indústria se capitalizam notavelmente e, se tudo correr bem, ocorre a chamada formação bruta de capital, ou seja, um aumento efetivo na infraestrutura e capacidade daquela indústria para criar mais bens e serviços. O resultado geralmente é uma grande concentração de poder e renda, causando descontentamento e servindo de combustível para conflitos de interesses entre diferentes elos da cadeia produtiva. Como consequência, ocorre um novo ciclo de regulação. Mas será que a dinâmica interna de distribuição de recursos é a única causa dessas ondas?
Como vimos há pouco, o modelo de negócio para o financiamento de conteúdo original adotado em um determinado período por um determinado segmento da indústria é determinado pelo cálculo da relação entre risco e retorno sobre o capital. Temos, portanto, três variáveis interdependentes para esse cálculo.
A primeira variável é o risco de perda do capital investido. Quando o risco é muito alto, uma empresa preferirá dividir esse risco com outros. O risco de investir em um novo produto audiovisual é sempre alto, pois a concorrência é gigantesca e a reação do público é imprevisível. A simples existência de grandes conglomerados de TV, Cinema e, agora, de Streaming nada mais é que uma estratégia de diluição de riscos, diversificando o portfólio de conteúdo em um grande catálogo. É por isso que esses agentes de mercado são conhecidos como “agregadores”, pois é exatamente o que fazem: agregam conteúdos para diluir riscos. Pequenos agregadores correm maior risco, por isso darão preferência aos acordos em que os custos (e consequentemente os lucros) são compartilhados com outros parceiros, entre eles o produtor e os talentos com maiores remunerações no orçamento. Se tudo der certo, todos ficarão felizes. Se der errado, ninguém irá à falência por isso. Já os grandes agregadores, por terem seus riscos diluídos, podem se dar ao luxo de correr o risco de capital sozinhos, apostando que embolsar 100% dos lucros em poucos acertos compensará os prejuízos de muitos erros.
A segunda variável é o retorno sobre o investimento, e está diretamente conectada à primeira. Quando a expectativa de retorno é muito alta (por exemplo, porque o novo conteúdo é derivado de uma franquia de sucesso), a disposição ao risco de capital aumenta. Essa é a razão pela qual empresas como a Disney desembolsam bilhões de dólares para adquirir universos ficcionais como Star Wars ou Marvel. Esse capital poderia financiar centenas de produções originais, mas a alta expectativa de retorno dessas marcas e o alto risco de tentar criar algo parecido a partir do zero fazem com que esses bilhões pareçam um investimento mais seguro do que algumas dezenas de milhões em uma ideia nunca testada. Portanto, quando a expectativa de retorno é baixa, a disposição ao risco também é baixa e o modelo negocial de preferência será o de compartilhamento de custos e resultados.
A terceira e última variável é a própria disponibilidade de capital. Primeiramente, porque o volume e o fluxo de capital determinam o grau de diluição de riscos que um agregador é capaz de atingir. Canais de TV e plataformas de vídeo digital, quando são remunerados por publicidade ou assinaturas, conseguem maior previsibilidade quanto ao fluxo futuro de dinheiro para arcar com seus compromissos. Por mais que essas receitas possam variar, isso acontece de forma bem menos abrupta do que na realidade de uma distribuidora de cinema. Um canal de TV pequeno não tem volume de capital, mas ainda assim tem um fluxo esperado de recursos (ao menos no médio prazo) que simplifica seu cálculo entre risco e retorno. No arriscado mundo da indústria cultural, mais vale ter receitas limitadas, porém confiáveis, do que grandes e incertas expectativas.
Mas não é só de fatores microeconômicos que depende a disponibilidade de capital na indústria audiovisual. Desde o fim dos acordos de Bretton Woods e o fim do lastro-ouro que deu ao dólar status de moeda de reserva global, vivemos em um mundo cuja economia se tornou progressivamente financeirizada com base em uma expansão monetária nunca vista, produzida pelo banco central do EUA especialmente depois da crise financeira de 2008.
Lato sensu, a expansão da base monetária se traduz em taxas de juro negativas, ou seja, mais baixas que a inflação. Isso significa que, num ambiente assim, é mais atrativo emprestar ou investir (mesmo com risco) do que guardar dinheiro na forma de moeda em caixa ou títulos públicos. Essa realidade é determinante não apenas no mercado americano, mas também nos demais países, influenciados por ela apesar das taxas locais de juros ou inflação. Isso ocorre porque a economia americana é a locomotiva mundial e sua moeda é a referência global de valor. Se isso é verdade para a economia de forma geral, o é ainda mais para o mercado global de mídia e entretenimento, em que o poderio norte-americano se faz sentir com toda força.
Tamanha oferta de dinheiro barato deveria, segundo a teoria econômica mais aceita, resultar imediatamente em altas taxas de inflação. No entanto, por uma série de razões (muito discutidas no âmbito da macroeconomia, mas que não dizem respeito a esta discussão), o surto inflacionário só se apresentou muito recentemente, no começo de 2022. Isso significa que passamos por quase 15 anos de inflação baixa com juros negativos, cenário sui generis, que serviu de solo fértil para o financiamento de todo tipo de empreendimento extravagante. Os exemplos pululam, desde WeWork e Theranos até um caso no mesmo mercado de vídeo por demanda: Quibi, que levantou US$ 1 bilhão em 2018 prometendo uma revolucionária plataforma de vídeos curtos para usuários de smartphones, e fechou as portas em 2020 (em pleno boom pandêmico do streaming), apenas seis meses depois de seu lançamento, sem ter conseguido atrair um número significativo de assinantes.
Esse é o ambiente em que literalmente todas as principais plataformas on-line de vídeo foram criadas e cresceram. Um mundo em que mesmo taxas explosivas de crescimento no número de usuários são eclipsadas pela escala da alavancagem financeira que as sustentam. Virtualmente nenhuma das grandes provedoras de vídeo por demanda baseadas nos EUA reportou lucro ao longo de uma década e meia de novas rodadas de investimentos, tomadas de crédito e investimentos bilionários em conteúdo original.
O que isso significa para o cálculo de risco-retorno dessas empresas no momento de investir em conteúdo para seus catálogos? A resposta pode ser alcançada de forma simples pela articulação das três variáveis apresentadas. Riscos potenciais e retornos esperados, ainda que relevantes no microcosmo dos processos de seleção de projetos são, na prática, desprezados diante da métrica sedutora de um estoque aparentemente infinito de munição financeira para enfrentar uma concorrência com o mesmo nível de acesso ao fluxo de capitais. Em tudo e por tudo, o mercado de streaming foi até hoje uma corrida armamentista em que a vantagem esteve do lado dos pródigos, dos esbanjadores e suas projeções irracionalmente otimistas.
As plataformas norte-americanas somaram US$ 200 bilhões em investimentos no desenvolvimento e produção de conteúdo original em 2020. É natural esperar que esses agregadores não manifestem interesse algum em um modelo de contrato diferente da aquisição plena de direitos. O artifício permite que essas empresas transformem, pelo abuso do diferimento, dinheiro de baixo valor (lembre-se dos juros negativos) em ativos de valor. O conteúdo contratado hoje com desconto remunera (ao menos do ponto de vista contábil) a arbitragem feita no ambiente de juros negativos e, na pior das hipóteses, aumenta o denominador de diluição de riscos na carteira.
Considerando o fato amplamente conhecido de que a grande maioria dos produtos audiovisuais nunca chega a produzir lucro líquido, a pergunta que nos resta fazer é a seguinte: por que o produtor, que tem capacidade muito limitada de diversificar seu portfólio de produtos, preferiria renunciar a uma receita imediata (o prêmio pago no contrato de buyout) em nome da mera possibilidade de uma receita futura (a participação nos lucros em caso de sucesso)?
Algumas hipóteses podem ser enumeradas com base naquelas mesmas três variáveis já mencionadas:
- Risco: poderia ser o caso em que, num contrato de participação, o produtor terá parte dos lucros em caso de sucesso, mas não participa dos prejuízos em caso de fracasso, ou seja, não haveria risco para ele.
- Retorno: o produtor tem convicção de que retorno financeiro do projeto será superior ao prêmio pago pelo agregador no contrato cost plus.
- Capital: O produtor tem acesso fácil e barato ao capital complementar que seria necessário para que ele financie parte do projeto e, com isso, retenha parte dos direitos.
Vamos analisar detidamente cada uma das hipóteses:
- Risco: no caso dos talentos (diretor, elenco, escritor) é comum a conversão de uma parte do valor nominal do cachê em participação nos lucros. Nesse caso, o capital é apenas indiretamente investido pelo talento na produção, na forma de um desconto. Esse arranjo tem várias vantagens para o talento: primeiro, porque na maioria das vezes a produção não teria recursos para pagar o valor nominal constante no contrato e, portanto, trata-se da escolha entre receber o cachê possível (somado à participação) ou não fazer o trabalho; segundo, considerando que a maioria dos projetos não dá lucro, o talento mantém o valor nominal do seu cachê em um patamar mais elevado, sem custo para o produtor, e pode usar esse valor “virtual” como parâmetro em negociações futuras com outros produtores. Já no caso dos produtores em si, é raro que a companhia de produção tenha participação em resultados sem que tenha investido valores diretos, a não ser nos casos em que o aporte é feito por terceiros em nome do produtor, como é o caso no financiamento público.
- Retorno: todo artista acredita no potencial da sua criação, mas a maioria dos profissionais da indústria sabe que o resultado de uma obra audiovisual é incerto. Só há dois tipos de produtor ou talento que podem racionalmente apostar na vantagem do retorno sobre o prêmio: aquele que detém direitos sobre uma marca que já goza de sucesso ou aquele que tem grande articulação de mercado a ponto de garantir vendas em mercados ancilares mesmo em caso de um produto medíocre ou fracassado. Em ambos os casos o problema a ser equacionado, mais que a participação nas receitas, é o prêmio pela aquisição, ou seja, a taxa de desconto que está sendo aplicada para trazer as receitas potenciais a valor presente.
- Capital: é raro o caso em que um produtor tenha a mesma facilidade de acesso a capitais que um agregador. No caso de produtores menores isso só acontece quando o aporte é feito por terceiros sem expectativa de retorno, como é o caso do financiamento público.
O exercício permite divisar um elemento comum nas hipóteses enumeradas. Em todos os casos acima, estamos falando de uma ínfima minoria (entre talentos e produtores) para a qual, por uma ou mais dessas razões, valeria a pena brigar por participação em receitas. Para a grande maioria dos criadores e produtores, que não são beneficiários das possibilidades acima, o modelo de contrato Cost Plus é o melhor acordo possível nas circunstâncias presentes em um mercado altamente competitivo, congestionado por uma multidão de ofertantes e sem grandes alternativas de visibilidade.
Jeff Sagansky, personagem central da atual discussão, representa aquela minoria privilegiada. É um produtor e investidor extremamente influente, tendo sido presidente de gigantes do setor como Sony Pictures, CBS e TriStar Pictures. Uma parte da fala do executivo no evento da NATPE chama a atenção, pois dá uma pista preciosa do que está em jogo na disputa. Em sua argumentação, Sagansky se queixa, dizendo que os primeiros contratos cost plus propostos pelos streamings incluíam (tradução minha) “enormes prêmios de compra que podem, em alguns casos, chegar perto de se aproximar dos lucros finais de alguns programas de sucesso e minha previsão – e estamos vendo agora – é que esses prêmios de compra estão caindo drasticamente e prevejo ainda que esses grandes negócios dados aos produtores de marca também desaparecerão à medida em que os streamers se consolidem e o ambiente competitivo se funda em torno de 3 ou 4 grandes serviços.”
Note que a disputa real aqui é entre grandes produtores (que ele chama de “produtores de marca”) quanto ao valor do prêmio nos contratos de compra que, segundo ele, começam a mostrar os primeiros sinais de achatamento. Mas qual seria a causa desse achatamento? Só há duas hipóteses:
- Os retornos esperados estão menores, sugerindo uma expectativa mais pessimista de faturamento por parte dos agregadores.
- A taxa de risco e desconto está maior que antes, sugerindo uma mudança no ambiente de financiamento aos agregadores.
Expectativas de retorno menores, aplicadas de forma geral a um catálogo amplo, não podem ser explicadas por avaliações particulares do potencial dos projetos. Teria que ser algo mais sistêmico, que afete o retorno de grandes serviços financiados por publicidade ou assinatura. Isso significa uma única coisa: as empresas projetam recessão econômica atingindo seus mercados de atuação.
Taxas de desconto mais altas no cálculo da taxa interna de retorno dos investimentos em conteúdo refletem claramente outra realidade que já se impõe no ambiente de mercado: alta nas taxas de juros que, consequentemente, aumenta o custo do capital e altera significativamente o cálculo do custo de oportunidade na alocação de recursos.
Os fatores analisados acima demonstram que os ciclos do ambiente macroeconômico podem ter maior influência sobre a dinâmica interna da indústria audiovisual do que podemos desatentamente supor. O acirramento dos conflitos de interesse entre os diversos agentes da cadeia produtiva da indústria cultural conduz a uma cadeia de eventos que, por vezes, culmina na adoção pelo Estado de políticas regulatórias restritivas, e pode ter como causa inicial uma mudança no cenário macroeconômico cuja importância não deve ser subestimada.
Para testar essa hipótese, vamos revisitar os dois momentos de acirramento e aperto regulatório que citamos anteriormente, à luz de dois indicadores macroeconômicos de inegável impacto nas atividades da indústria audiovisual: as taxas de juros de referência e os índices gerais de preço (inflação). Ambas serão vistas aqui no contexto dos EUA, pelas razões já explicitadas.
O gráfico abaixo mostra a evolução das taxas de juros nos EUA entre 1800 e 2016, no qual inserimos, em 1948, a decisão da suprema corte norte-americana que obrigou os grandes estúdios a abandonar suas operações no circuito de salas de cinema (os Paramount Cases). O processo, ocorrido na esteira de uma série de conflitos e litígios entre empresas do setor, veio no terceiro ano de um cenário de contração monetária que se seguiu após as taxas americanas atingirem seu mínimo histórico em 1946, após 25 anos de quedas, sendo os últimos 10 anos de reduções radicais nos juros. Essa expansão monetária havia ajudado a financiar a expansão do Studio System. A interrupção desse processo de expansão e a consequente restrição de crédito levaram os estúdios a adotar contratos cada vez mais agressivos com os exibidores, como o Block Booking (programação de pacotes de filmes sem chance de o exibidor escolher títulos) e o Blind Booking (programação de um número predefinido de títulos antes que os títulos fossem conhecidos pelo exibidor). O resultado foi a batalha judicial e consequente regulação por meio de decisão vinculativa da suprema corte. O cenário atual é muito similar àquele. Após 40 anos de queda nas taxas de juros, o cenário inflacionário em 2022 obriga a autoridade monetária a subir as taxas. Essa virada de mão, que fatalmente causará um período recessivo, pressiona os modelos de negócios dos agentes de mercado, causando conflitos e reivindicações por mais regulação.
O próximo gráfico mostra a evolução da taxa de juros dos EUA entre 1950 e 2021, onde inserimos, em 1970, a criação da regulação Fin-Syn para as redes de TV. As faixas em cinza vistas no gráfico (elaborado pelo banco central americano) indicam os períodos de recessão econômica vividos naquele país. Note que a regulação veio exatamente num momento de recessão ocorrida após uma escalada aguda das taxas de juros nos anos anteriores. São momentos de recessão que causam o ambiente de conflito na indústria e resultam na intervenção do Estado. As normas de Fin-Syn começaram a ser relaxadas no começo da década de 80, em outro momento de recessão, com taxas de juros nas máximas históricas. As circunstâncias econômicas adversas colocaram as redes de TV em tamanha dificuldade que passou a ser do interesse da indústria como um todo o afrouxamento das restrições, de forma a dar alternativas comerciais aos agentes de mercado.
Por fim, como contraprova, testamos a localização dos eventos agora no gráfico histórico das taxas de inflação americanas entre 1944 e 2022. Ali observamos que o caso Paramount ocorreu num período em que as autoridades daquele país travavam combate com o surto inflacionário que marcou o fim da segunda grande guerra. Em 1948, após uma queda forte das taxas, observamos um repique inflacionário, ensejando aperto monetário mais forte. 1970, ano em que foi instaurada a regulação Fin-Syn, marca outro pico inflacionário, bem como o começo do processo de desmontagem dessa regulação, no começo dos anos 80.
Os dados parecem reforçar a impressão de que o acirramento das disputas entre os agentes econômicos na indústria e a pressão por mais regulação no mercado estão relacionados a momentos de stress macroeconômico, notadamente as condições de financiamento e capacidade de alavancagem de capitais por parte dos grandes agregadores de conteúdo audiovisual.
Parece correto afirmar que hoje estamos vivendo um desses momentos. Após anos de juros muito baixos, um cenário de inflação e recessão mudam radicalmente as perspectivas de crescimento e equilíbrio financeiro dos maiores agentes agregadores do momento, os serviços de vídeo por demanda. Acostumados a praticar um modelo de negócio que não admite o compartilhamento de riscos e resultados comerciais sobre as obras, esses agentes reduzem prêmios em seus contratos, levando ao descontentamento, inicialmente dos produtores mais fortes no mercado que, por sua vez, clamam por intervenção do Estado em favor dos seus interesses. Poderíamos nos perguntar por que os agregadores não passam a adotar o consagrado modelo do backend, dando aos produtores a participação que reivindicam ao mesmo tempo em que reduzem seus riscos. Esse movimento é perfeitamente possível e não seria surpresa vermos os grandes produtores conseguirem exatamente o que querem, por motivos mais amargos do que gostariam. Entretanto, conforme refletimos, as características operacionais dos agregadores de vídeo por demanda criam obstáculos importantes à adoção desse modelo.
No mercado de capitais, existe uma expressão, “Minsky Moment”, que se refere ao ponto inicial de um colapso repentino e importante dos valores dos ativos financeiros, marcando o fim de uma fase de crescimento de um ciclo nos mercados de crédito ou de atividade comercial. Ao que tudo indica, esse momento tem seu análogo na indústria de conteúdo, representando o ponto em que as luzes da festa parecem ratear e dedos são apontados entre os elos da cadeia audiovisual. Batizemos, portanto, esse ponto de inflexão homenageando o personagem do momento. Ao que tudo indica, estamos vivendo um “Sagansky Moment”.
Referências:
Vogel, Harold L. “Entertainment Industry Economics: A Guide for Financial Analysis 8th Edition”