Sobre a Consciência
A consciência é talvez um dos enigmas mais antigos da humanidade e segue não solucionado. Trata-se de uma tema presente em todas a principais tradições religiosas e filosóficas, na psicologia, neurologia e chega até a engenharia no tema da inteligência artificial. Um panorama da questão nos permite identificar uma clara divisão entre duas correntes principais: a materialista e a espiritualista. Essas nomenclaturas podem ser substituídas por outras: physis e logos, realismo e nominalismo, idealismo e existencialismo, etc. Essas duas vias podem parecer auto-excludentes mas é possível que alguns dos melhores insights que possamos alcançar sobre a consciência estejam exatamente no exercício dialógico entre elas.
O materialista acredita que a consciência é um subproduto da mente e para isso parte de algumas premissas. A mente é um conjunto de rotinas de processamento de informação; o objetivo dessas rotinas é a sobrevivência e reprodução do espécime individual, definido pelas fronteiras do corpo individual. Conforme esse conjunto de rotinas fica mais complexo (pela evolução) surge uma macro-rotina superior (um sistema operacional) chamado ego. Ele existe apenas porque, com ele, as demais rotinas funcionam de forma mais eficiente, eficaz e efetiva. Ou seja: o ego é um subproduto da capacidade do corpo (cérebro) de processar informações visando sua perpetuação. Portanto a consciência (sapiens-sapiens), o saber de si, o imaginar-se existente seria uma ilusão útil, produzida pelo corpo individual. O corpo produz um ente imaginário que pensa habitar o corpo e transcender o corpo, mas na verdade é só uma estratégia do próprio corpo. Em resumo, o logos é um cúmulo de informação originado no comportamento da physis. Logos é emergente enquanto Physis é intrínseca.
O problema com a perspectiva materialista (imanente) da consciência é o corpo. Claro, pois o problema com qualquer perspectiva radicalmente existencialista será o ente, a precariedade do ente, a arbitrariedade do ente e sua incapacidade de formular a si mesmo (o olho não pode ver o próprio olho e, quando diante do espelho, não pode ver a si mesmo olhando outra coisa que não de volta a si e, ainda assim, como mero reflexo). Como poderia o eu senciente e a consciência serem produtos do corpo se a definição e fronteira do corpo é um estereótipo, uma convenção imaginada exatamente por esse eu senciente, ou de outra forma, estabelecida pela estrutura de linguagem que lhe subjaz? O materialismo responderá com a Espécie (outra identidade construída pela imaginação). A psicologia, talvez a última grande conquista da cultura humana, tratará de demonstrar que o indivíduo, ao contrário do que sugere a alcunha, está todo dividido e as partes que lhe habitam não se limitam às fronteiras do corpo, nem mesmo da espécie (algo que o modelo darwinista admite como correto). Então, como disse W. H. Auden, somos vividos por forças que fingimos entender. Entes não individuais vivem nas redes de mentes individuais ignorando por completo as fronteiras identitárias (identidades de indivíduos ou de grupos de indivíduos). Arquétipos são exemplos disso. Outro exemplo vem da ciência biológica que, no limite, debate em relação problemática com a fronteira corpo, desde o estudo da flora intestinal até as relações entre as raízes de árvores através de um rede fúngica. Em verdade, como já era esclarecido pelas tradições do hinduísmo e do budismo, a fronteira individual é um terrível limitador da nossa capacidade de experimentar e conhecer o universo de forma mais clara, realista e ampla. Eis porque o horizonte do caminho espiritual nessas tradições é a eliminação do ego (porção do logos que se identifica com a forma corpo). Vivendo numa cultura individualista, também precisamos lembrar que houve fases, épocas e culturas coletivistas em que a ideia de indivíduo era bastante diferente da que temos hoje. Então está claro que o problema não é especificamente o indivíduo já que este é apenas uma das diversas facetas do problema maior, que é a identidade. A identidade é um artifício de sujeito, mas está claro que ela é objeto. O sujeito definitivo é a consciência e não há sinal de que ela se limite às fronteiras das identidades.
Em oposição à visão do materialismo estão, portanto, as tradições religiosas, assim como seus frutos na filosofia. Essa formulação se funda na experiência milenar em lidar com os problemas advindos de experimentar a existência: o sofrimento, a dúvida, o desejo e o conhecimento. A mente humana debruçou-se sobre si mesma (graças precisamente à “com-ciência”) e foi descascando, camada após camada, cada uma dessas rotinas e ilusões, começando pelas supérfluas ou disfuncionais até concluir que todo o conteúdo da mente é ilusão, artifício para lidar com o que é passageiro. Pela experiência de coisas como a meditação, contemplação e intelecto, pode-se compreender em primeira mão que sob todas essas camadas, inclusive a do eu senciente, permanece a experiência de testemunho da existência. Ou seja, a experiência de estar presente diante da existência não pode ser um subproduto imaginário dessa mesma existência, mas ao contrário, a transcende completamente, residindo sempre além do horizonte da cognição (que é o único mecanismo do ente existente para algo ao menos próximo do que é a experiência da presença que testemunha) como um alvo móvel, como a física além do horizonte do evento. Em resumo, o Logos precede a Physis.
O problema com a perspectiva espiritualista (transcendente) é o limite da própria linguagem. Ao propor uma caminho para dizer o indizível e conhecer o incognoscível, dá origem à ideia de dois mundos: um eterno, perfeito e imutável (Deus, Nirvana, etc) e outro transitório, ilusório, opaco, que é a existência que conhecemos. Mas está claro, inclusive para essa perspectiva, que o eterno não pode ser conhecido nem representado, pois ele é não-existente (não está no campo da existência, mas do Ser). Conhecer e representar é o meio pelo qual o existente (ente, criação, etc) dá conta de seu contato inescapável como o eterno (ser, criador, etc) e percorre seu caminho de volta e ele. Todo ente existente é profundamente marcado pela evidência dessa presença, pois é sentida por ele como sua própria presença no mundo. Todo ente experimenta e está presente e não pode deixar de fazê-lo, nem na morte (é o Deus em si, imanente). Mas percebendo-se ente, ou seja, como algo que acontece no campo dessa presença, testemunhado por essa experiência, se vê como algo distinto desse eterno, dessa presença que é a única coisa definitivamente real. Com isso, o homem, a partir de seu despertar em algum ponto da pré-história que deu origem às religiões, vê dois mundos: um que é absolutamente real e auto-evidente, mas que não pode ser conhecido nem representado; e outro que é completamente relativo, fugidio e instável, mas que pode ser conhecido e experimentado. Sendo ele, o ente senciente, única testemunha e ponte entre esses dois mundos. O conflito entre os dois mundos, ou melhor, de perspectivas em relação a esse problema, está no âmago de todo o debate intelectual, espiritual, religioso, científico, filosófico e político da história de nossa civilização. Vai das questões mais profundas até as polêmicas mais mundanas, subdividindo-se e embrenhando em todos os aspectos da cultura.
Um bom exemplo dessa divisão é o debate entre Heráclito e Sócrates. Enquanto Sócrates sublinha a existência de um mundo “ideal” como fonte necessária de onde se desdobra o mundo existente, Heráclito lembra que o homem é existente e, portanto, só lhe compete o mundo existente. Heráclito não exatamente rejeita a idéia do absoluto, apenas defende que, incognoscível por definição, o absoluto não poderá aparecer no discurso de Sócrates, senão como fraude. O sofista abraça a existência, confia na necessidade da existência e prega que é nela e somente nela que o caminho pode ser percorrido. Sócrates, por sua vez, embora admita as mesmas premissas, defende que a perspectiva do sofista traz o abandono ao relativo, flerta com o cinismo e que é preciso consciência constante da primazia do absoluto e do eterno para se obter o firme propósito necessário para percorrer até o fim o caminho de volta ao absoluto. Para Sócrates esse caminho é a filosofia, ou seja, a decantação da verdade em meio ao caos da impermanência. Os riscos alertados por Heráclito são reais. A clivagem dos dois mundos leva a uma tipo de niilismo, como é o evidente niilismo budista (exceto talvez no tântrico). Esse niilismo, presente no idealismo, é objeto de crítica por Niezsche, outro pensador que disseca de forma impiedosa as ilusões brotadas na ideia dos dois mundos. O fundamental aqui é, ao menos pelo que parece, que o foco nos sinais da existência (proposto por Heráclito, Nietzsche e as teofanias) ou o foco na supressão de suas ilusões, nenhum dos dois, supõe que não haja absoluto. Essa ausência de absoluto resulta diretamente em sua contraparte, o relativismo absoluto. Este, além de contraditório, formula um niilismo precisamente sem sentido, uma vez que se nada é real também nada pode ser conhecido ou comunicado. Disso jamais se tratou o debate, independente da corrente. Trata-se de puro fruto de ignorância e falha básica de lógica.
Os dois modelos de pensamento podem ser melhor apropriados pela imagem de caminhos alternativos que buscam o mesmo destino. Uma trilha suprime ilusões para revelar que aquilo que se busca está sob os escombros da impermanência e que lutar contra moinhos de vento não nos aproxima da vitória. Esse caminho minimalista busca o eterno pela renúncia ao transitório. É deixar que o ente seja absorvido pelo cosmo. O abismo que bordeia essa trilha é o niilismo. Outra trilha, mais familiar para nós que fazemos parte do que se convencionou chamar de civilização ocidental, valoriza a integração com o mundo, a conquista da experiência de duração (a versão do ente para a permanência) e a celebração do conhecimento. Esse caminho maximalista busca o eterno pela adesão ao verdadeiro. É expandir a entidade humana até a completa absorção do cosmo. O abismo que a bordeia é a ilusão.
Temos portanto duas abordagens complementares e dialéticas através de cujo diálogo a cultura humana desdobra sua relação com a existência e percorre seu caminho para o Ser. Um reconhece plenamente a outra. O Bhagavad Gita, ao contar a história de como Arjuna é convencido por Krishna a guerrear contra seus irmãos apesar de tudo, versa exatamente sobre a necessidade de percorrer o caminho do mundo. A física contemporânea se debruça diretamente sobre o problema do incognoscível e do observador, e a compreensão do que poderiam ser as últimas peças do quebra-cabeças que unifica as leis do universo ocupa-se deliberadamente da expansão da consciência humana para compreender dimensões superiores. Estará o Yogi se esquivando das responsabilidades da vida em nome da busca vã de algo que nunca poderá ser experimentado? Ou será que é o pensador que se ilude ao crer que pode expandir indefinidamente sua mente limitada e compreender a essência do universo, quando na verdade (como defende Noam Chomsky) a linguagem é um repertório predeterminado e limitado de compreensões que não pode ser expandido pela vontade humana?
Por trás da miríade de debates conflituosos que vivemos cotidianamente hoje (que superficialmente parecem inconciliáveis) está, plenamente ativa, nossa sensibilidade enquanto cultura para essa questão fundamental. Se o debate degenera muitas vezes pra o divisionismo, para o faccionismo ideológico, não é por haver uma deriva cultural incurável, mas pelo extremo sucesso da proliferação dos conteúdos dessa cultura civilizacional, envolvendo um número jamais visto de pessoas, sendo a maioria delas ignorante a respeito do arcabouço histórico e da espinha dorsal daquilo que anima sua curiosidade e paixão pelo debate. Não se poderia esperar outra coisa, uma vez que a Ágora é parte da existência e está imersa em sua confusão, mas toda essa pirotecnia e esses turbilhões seguem observados silenciosamente pela consciência cósmica e é através desse olhar que ela conhece a si mesma.