5 Verdades Sobre a Liberdade
Não. Não é mais uma daquelas listas caça-cliques. Se fosse essa a ideia, pensaria num título bem mais eficaz. Algo como “Essas 5 verdades sobre a liberdade vão explodir sua cabeça”; “5 verdades que vão mudar sua maneira de ver a liberdade”; ou, para criar logo uma seita de adeptos fanáticos, “5 verdades sobre a liberdade que ELES não querem que você saiba”.
A história dessa lista é outra. Como Marcial Renato já relatou no texto “Distribuição de Guerrilha”, após uma bem-sucedida carreira em festivais com nosso longa, Dia de Preto, decidimos que, para o lançamento comercial em salas de exibição, o filme deveria ganhar uma narração em off do personagem principal, de forma a torná-lo um pouco mais acessível para um público diferente. O filme que rodou os festivais tinha pouquíssimo diálogo. O documento usado para legendagem tinha apenas 10 páginas de texto, bilíngue. Era uma esfinge que desafiava o espectador a interpretar tudo, desde a trama até o tom. Houve sessões em que as pessoas, contagiadas umas pelas outras, se escangalhavam de rir, embarcando no cinismo, na ironia e na paródia sutil que o filme fazia aos gêneros do cinema B. Em outras o público contemplava silencioso e depois conversava com a gente no café sobre como as cenas eram tensas. Muitos outros, claro, só acharam chato.
Como disse o Marcial, foi assim que voltamos à etapa de desenvolvimento, criando o texto do off e substituindo a divisão original do filme em sequências iniciadas por cartelas apresentando os novos personagem que entravam em cena por subtítulos de “capitulos”. Agora, cada um dos exóticos personagens representava uma das “cinco verdades da liberdade” que se revelavam para nosso protagonista. O texto do off não explica a trama, como em Blade Runner ou Tropa de Elite (filmes famosos por receberem trilhas de offs na pós-produção). No nosso caso, o off coloca um microfone da consciência do personagem principal e assim podemos ouvi-lo filosofar sobre o absurdo de sua situação.
Mas nosso personagem não é um filósofo, e sim um cara do povo. Sua filosofia tinha que ser de vida forjada na realidade, com a linguagem das ruas, para comunicar a ideia central do filme: liberdade não é prêmio, não é algo que você ganha e então usufrui, mas sim um valor pelo qual e segundo o qual se luta para reconquistar a cada dia, que jamais é possuído ou controlado e que tem um custo altíssimo que todo ser humano, por alguma razão misteriosa, está disposto a pagar em algum grau.
No texto narrado, nosso personagem central vai apresentando suas conclusões (cinco) sobre os dilemas ou mesmo os paradoxos da liberdade, do jeito dele, recorrendo aos ditos da sabedoria popular. Aqui, vou falar um pouco sobre cada uma dessas verdades, do meu próprio jeito.
A primeira verdade sobre a liberdade apresenta de cara o problema central com o qual você vai lidar em seu desejo de ser livre: A vida é uma benção, mas é foda, irmão. Na luta eterna por liberdade, o indivíduo enfrenta todo tipo de obstáculo e dificuldades. Viver é sofrer. É um erro imaginar que você sofre agora para então conquistar a liberdade, imaginada como uma terra prometida e sem sofrimento. Pelo contrário, ao escolher a liberdade, você escolhe o sofrimento. Sofrer as porradas dadas pelo mundo é o que te sinaliza que você está exercitando sua liberdade. Tá doendo? Ótimo. É sinal de que você está vivo e, quanto mais liberdade, mais dor. Afinal, sem ilusões, o que submete seres humanos a escravidão é o instinto de auto-preservação, de evitar dores insurportáveis que o ameaçam caso decida lutar por liberdade. A injustiça do mundo é essa: alguns de nós se veem diante de custos altos demais para exercitar a liberdade. A ameaça de dor é tão grande que a pessoa acaba se sujeitando à servidão. Nessa realidade o preço da liberdade pode ser a marginalidade, o crime ou até a morte. Do começo ao fim, no entanto, a escolha é sua.
A soberania individual é uma ilusão. Ninguém é senhor absoluto de suas escolhas. Muitas vezes, exercitar a liberdade é simplesmente escolher a quem se deseja servir. No Brasil colonial, muitos escravos preferiram servir a Zumbi dos Palmares do que ao senhor de engenho. Não faltam indícios de que Palmares não era exatamente a comunidade hippie e anarquista que alguns fantasiam. Ali pagava-se, inclusive com submissão, o preço de não ser escravo dos senhores brancos. Quem reprovaria essa escolha? Eu não. Mas houve também o negro que escolheu ser capitão do mato como forma de ampliar seu poder de exercício da liberdade. Como disse antes, são escolhas que cada indivíduo na História da humanidade teve que fazer, dentro dos duríssimos limites de sua própria realidade. Cada um pagou seu preço, inclusive imperadores e senhores de terra, pois eles também obedeceram aos poderes que restringiam suas ações. Assim é até hoje. É ilusão imaginar que o dito popular acima se reduz ao diagnóstico classista, em que há pessoas que mandam porque têm poder e outras que obedecem porque não têm. A sabedoria do povo capta algo muito mais amplo aí. Até mesmo presidentes da república (ao menos os que têm juízo) obedecem aos mandos de outros poderes.
A segunda verdade sobre a liberdade, portanto, dá aquela dica fundamental, tão antiga quanto a filosofia estóica: há coisas que você controla e coisas que você não controla, então aja sobre o que você controla. Não adianta brigar contra o que você não pode mudar e bater de frente com o sistema, dando murro em ponta de faca. Só pré-adolescentes imaginam que ser livre é não obedecer a nada nem a ninguém. Quem tem juízo, escolhe com sabedoria os poderes aos quais irá obedecer e os que irá confrontar. Liberdade é o exercício em si dessa escolha.
A terceira verdade sobre a liberdade diz algo como: todo cuidado é pouco e, se você conhece os riscos, proteja-se deles. Você sabe que o rio tem piranha, então seja diligente e proteja-se. O jacaré do provérbio não expõe às mandíbulas do cardume de carnívoros sua barriga, menos protegida. Ele nada de costas, voltando para o perigo conhecido seu couro mais duro. Esse é outro ensinamento precioso da experiência popular para quem nada livremente. Se você é livre então é responsável por sua própria integridade.
Repare que o ditado não diz que, em rio que tem piranha, o jacaré não nada. Ele nada sim, num rio perigoso, pois isso é a liberdade: poder escolher o caminho mais arriscado. Mas, ao escolher o perigo, cabe ao sujeito livre mostrar que tem casca grossa.
Se a terceira verdade é sobre risco, a quarta é sobre incerteza. No caminho da liberdade, muitas vezes nadaremos em rios nos quais não fazemos ideia se têm piranha ou não. A diferença entre risco e incerteza é essa. Risco é um perigo conhecido e, portanto, para o qual você pode e deve se preparar. A incerteza tem outra natureza. Ela nos sinaliza que algo completamente inesperado pode acontecer e que nada é garantido. A única coisa que sabemos é que estamos expostos a desagradáveis surpresas que podem muito bem pôr fim a nossa aventura na Terra. Isso significa que o medo nos acompanhará sempre, por onde formos. Temos pontos vulneráveis, portanto vivemos sob a sombra da incerteza e não há nada que possamos fazer a respeito.
A quarta verdade sobre a liberdade então nos informa que quem tem algo a perder vive com o cu na mão. Quem é livre tem algo a perder, sempre, e por isso o medo será seu companheiro de viagem. Portanto, lembre-se que há riscos que você não conhece, que o medo nunca vai passar e que nada disso é desculpa para não seguir em frente.
Rapadura é doce, mas não é mole não. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Em rio que tem piranha, jacaré nada de costas. Quem tem cu, tem medo. É impressão minha ou só tem má notícia nessas verdades sobre a liberdade? A conclusão que o sujeito chega após conhecer essas quatro verdades (a qual nosso protagonista também chega, no filme) é que para ser livre você está literalmente fodido. Calma, porque é isso mesmo.
Se você chegou até esse ponto na sua jornada pela liberdade, já descobriu até que ponto vai a dureza da doce rapadura proverbial da primeira sentença. Qualquer ilusão de que pode haver um prêmio ou uma xangrilá esperando atrás do arco-íris, onde uma infantil “liberdade definitiva” possa ser apreciada sem interrupções em toda sua perfeição, há de ser triturada do moinho da vida conforme a “verdadeira liberdade” vai amadurecendo dentro de você.
Essa liberdade verdadeira se revela quando você descobre que ela não está por ser conquistada, mas esteve aí com você o caminho todo. Mais que isso, você descobre, desiludido, que está mesmo ferrado e que o único prêmio que a vida oferece é a própria vida e a liberdade de escolher como vivê-la. É aí, nesse momento glorioso, que a pessoa se vê toda escalavrada, atolada até o pescoço na lama do mundo e, finalmente, se percebe sem expectativa alguma de que exista algo melhor que ela, por puro azar, esteja perdendo. Naquilo que realmente importa, no mundo real, a coisa não está muito melhor pra ninguém. Toda escolha é uma renúncia, perigos nos espreitam a cada curva e o prejuízo é uma certeza.
Mas, espere, apesar de tudo isso você continuou escolhendo o caminho da liberdade e, convenhamos, houve algum momentos maravilhosos nessa jornada (iclusive nos rios cheios de piranhas). Acima de tudo, agora você sabe que fez algo muito melhor do que “o que poderia ter feito” ou “o melhor que pôde”. Não! Você fez o que QUIS fazer. E continuará fazendo até o derradeiro fim, se é que há um fim (não vá se animando). Portanto, se a dor é inevitável, se você está fodido mesmo, por que não fazer isso do seu jeito? Ou melhor: porque não continuar fazendo do seu jeito, só que sabendo disso?
A quinta verdade sobre a liberdade te liberta. Dizendo: não se preocupe, nada vai dar certo. Não tem pote no fim do arco-íris. Você é tão livre quanto decidir ser. Aliás, você já decidiu. Só falta aceitar.
Depois de ser confrontado com a quinta e derradeira verdade sobre a liberdade, nosso herói sentiu a mesma coisa que você. É como se alguém te desse um pedaço de papel e te dissesse, como o senhor de engenho disse ao escravo na sequência final: “toma, essa é a tua liberdade, agora segue teu rumo”. A alforria é uma ilusão. Nenhuma liberdade que te seja dada por algo ou alguém de fora, seja uma princesa boazinha ou uma montanha de dinheiro, é liberdade verdadeira. A verdade final sobre aquela liberdade na qual você acreditava antes é que ela é uma farsa.
Por isso eu digo: conhece essas cinco verdades, porque no fim das contas, como diz nosso herói na última frase do filme:
Quem é livre sabe.