A Corrente

A Corrente

Recentemente, chegou no Instagram da Maxie várias postagens sobre o livro A Ilha, de Adrian McKinity. Como costumo fazer com todo livro muito comentado do qual nunca ouvi falar nem do livro nem do autor, resolvi pesquisar um pouco para decidir se colaria o volume na minha lista de leitura.

Logo encontrei a página em inglês do livro no Wikipedia e que tinha uma informação para lá de inusitada. O autor, McKinity, havia abandonado a escrita em 2017 após ser despejado de sua casa alugada devido a falta de renda de seus livros publicados até então e havia se tornado um motorista de Uber!

Ao saber de sua situação, um amigo também escritor fez seu agente dar uma lida nos livros de cara. E não é que o agente gostou? Ele emprestou dez mil dólares a McKinity (an “advance on the advance”…), que veio a escrever o que foi lançado como The Chain (A Corrente). O livro virou best-seller e foi bastante premiado, alavancando a carreira de McKinity com um contrato de seis dígitos para escrever um novo livro.

Mesmo sabendo que talvez a realidade tenha sido ligeiramente menos encantada do que a pintada no Wikipedia, eu fiquei fisgado pela história do autor fracassado motorista de Uber que atinge o estrelato, pois eu me reconheço nela (não na parte do motorista de Uber ou do estrelato).

Decidi então que não leria A Ilha, mas, sim, A Corrente, é claro.

E que decepção… pois não lembro de ter lido um livro com uma premissa mais inverossímil que esse.

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SPOLER ALLERT

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O livro é dividido em duas partes. Na primeira, somos apresentados a Rachel, uma mãe divorciada que se vê em um pesadelo angustiante quando sua filha Kylie é sequestrada. Rachel é forçada a participar de um plano perverso conhecido como ‘A Corrente’. Através de telefonemas ameaçadores, ela é informada de que, para garantir a libertação de sua filha, precisa pagar um resgate e, mais chocante ainda, sequestrar outra criança para dar continuidade à corrente de sequestros.

Confrontada com a impensável decisão de cumprir as exigências dos sequestradores para salvar sua própria filha, Rachel é lançada em um redemoinho de desespero e dilemas morais. A narrativa tenta mergulhar profundamente em suas angústias e incertezas, explorando os extremos aos quais uma mãe desesperada pode ser levada. A escrita de McKinty até consegue dignamente transmitir a tensão crescente e a urgência da situação. Contudo, ela falha em conseguir esconder a impossibilidade dessa corrente sádica minimamente dar certo: pois é evidente que cedo ou tarde (provavelmente mais cedo do que tarde…) alguém iria “quebrar a corrente” e envolver a polícia.

O enredo tenta explicar isso devido ao processo de “seleção” que é feito, garantindo que os próximos pais que terão um filho sequestrado se encaixem no perfil de não envolver forças de segurança ou imprensa ou políticos ou…

Tolice. Impossível garantir isso.

Na segunda parte do livro, somos finalmente apresentados aos mentores por trás da elaborada rede de sequestros: os gêmeos, que há muito tempo vêm orquestrando os eventos cruéis conhecidos como ‘A Corrente’. Essa revelação acaba gerando mais uma série de questionamentos e descontentamento.

Embora o desejo de conhecer os cérebros por trás da trama seja compreensível, as explicações fornecidas para a existência e a operação dessa corrente se mostram, mais uma vez, insatisfatórias.

Irmão e irmã, quando crianças, viviam largados em uma comunidade hippie de drogados, quando foram resgatados pelo pai, que forma uma nova família. Mas, aparentemente (pois nenhuma outra explicação é dada) o simples fato de os irmãos terem vivido naquele ambiente desregrado parece ter sido suficiente para se tornaram sociopatas, pois eles matam o novo meio-irmão jogando-o da poupa de um cruzeiro. A madrasta entra em parafuso com a morte do filho e toma uma overdose de remédios. Os gêmeos a encontram ainda com vida, mas decidem deixá-la morrer. Pouco depois, eles matam o pai com um tiro na boca simulando um suicídio. A narrativa tenta construir um esboço de justificativa lógica, explicando o porquê desses gêmeos terem esse comportamento, mas…

Aos poucos, mais detalhes sobre o funcionamento da corrente são revelados, mas a concepção de que alguém poderia de maneira realista manter um esquema tão complexo e sinistro, sem ser detectado ou traído, é algo que exige uma suspensão considerável da descrença. Além disso, as motivações dos gêmeos para levar a cabo essa operação grotesca carecem de profundidade e justificativa convincente.

Mas não carecem de contradição, pois a mesma pessoa responsável pelo metódico e tecnológico plano à prova de falhas, coloca tudo a perder utilizando a corrente para outros fins, até mesmo para namorar o ex-marido da Raquel, o que, inevitavelmente, acarretará contato com ela e com a filha sequestrada.

Talvez essa tenha sido uma tentativa de mostrar que “só uma louca mesmo” teria “capacidade” para colocar em prática tal plano, mas de novo…

Enfim, o livro fez imenso sucesso, ganhou prêmios, ok. Mas, pela experiência que ele me proporcionou, considero que Adrian McKinity, como autor, é um excelente motorista de Uber.

Marcos Felipe Delfino

Marcos Felipe Delfino

Nascido em 1975, Marcos Felipe, também conhecido como Marquinho, ou Marquito, ou Kinets, já tentou ser músico, fotógrafo e cineasta entre outras frustrações. Hoje é servidor público.

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