Barbie: um La La Land no campo minado da guerra dos sexos.
“Barbie” é desses filmes envoltos em tanta espuma política, cortina de fumaça da guerra cultural e pseudo-polêmica social que assisti-lo se torna uma experiência antropológica. Antes de assistir, havia identificado três grupos de torcida organizada em torno do filme e, aviso, o que se segue são descrições estereotipadas mesmo, pois o assunto é Barbie então paciência.
O primeiro são os fãs de blockbuster. Aquele pessoal que embarca alegremente em qualquer hype desproporcional a exemplo de Avatar, Liga da Justiça, etc. Esse grupo está fazendo o que faz sempre: supervalorizando um filme que você sabe de antemão que não tem como ser excepcional. Nessa faixa de público os temas de debate estão presentes apenas na superfície como mais um item de press release.
O segundo grupo é o das feministas, que vem problematizando o filme em textões de rede social, vendo ali uma estratégia maquiavélica da capitalista Mattel no intuito de dar um verniz politicamente correto àquela boneca que, no fundo, sempre foi uma arma do patriarcado para oprimir as mulheres. A lacrada que a personagem adolescente dá na Barbie na cafeteria da escola, magoando os sentimentos da boneca, resume a crítica e representa essa bancada para todos os efeitos. A mesma paixão com que uma criança venera seus ícones costuma se converter em rejeição igualmente apaixonada na aborrescência. Faz parte. Afinal, para crescer é preciso primeiro rejeitar as coisas de criança. A maioria de nós, depois de um tempo, volta a nutrir carinho pelas relíquias da infância, mas devemos compreender os que nunca passam da fase.
O terceiro é a fauna dos conservadores de Facebook, os incels, os combatentes anti-woke e assemelhados. Esse grupo, tenha ou não assistido, acusa o filme de ser mais uma peça de propaganda globalista liberal cujo objetivo final é destruir as tradições da já decadente civilização ocidental. Esse plano maquiavélico, idealizado e executado por gênios do mau como George Soros, Bill Gates, Justin Trudeau e Anitta, deve ter algo a ver com vacinas mortais, a Otan e alguma empresa chamada Black Rock, gerida por reptilianos.
Na minha bolha temos ainda um grupo bônus: aqueles cinéfilos que, nas CNTP, jamais perdoariam um filme da Mattel, mas porque Barbie é da Greta Gerwig e do Noah Baumbach, então pode.
Fui ao cinema com uma expectativa baixa, porque filme de boneco, porém positiva, porque algo que desagrade simultaneamente ao chatos de esquerda e de direita já começa bem. A coisa que menos importa no mundo é minha humilde opinião, mas lá vai ela: o filme é divertido e melhor do que se poderia esperar. Afinal, de um filme da Barbie o que a gente espera a princípio é alguma bobagem escrita à dezoito mãos por um time de publicitários. Mas a Mattel foi corajosa e colocou o projeto sob a responsabilidade de alguns dos hipsters mais esquisitões do cinema indie. Mais que isso, o próprio conteúdo indica algum nível de liberdade criativa. O resultado é um La La Land no campo minado da guerra dos sexos, inspirado por Lego Movie, Toy Story e DivertidaMente. Tinha tudo pra dar errado mas nem deu.
Quanto aos temas com alta octanagem de treta, o filme faz um picadeiro de circo com praticamente todos os memes da disputa feminismo vs machismo. Tem um pouco de lacração, mas também tira sarro da lacração. Tem crítica ao capitalismo e propaganda de boneca. É confuso, contraditório, algo digno de um futuro museu da pós-modernidade.
No fim das contas, Barbie é um autêntico produto de sua cultura: uma alegoria que faz a catarse do zeitgeist do seu tempo sem se preocupar em “resolver” nada além da necessidade da Mattel em reposicionar um brinquedo cuja simbologia estava defasada. Então o filme não está fazendo sucesso a toa, muito embora seja uma bobagem, porque ele não fige ser menos precário que eu e você.
Dito isso, devo me ater ao meu lugar de fala que, nesse caso, é de macho branco da geração X e dizer que a melhor coisa do filme é o Ken. A atuação sem medo de ser feliz
de Ryan Gosling faz o antagonista improvável se transformar praticamente num protagonista. De longe o personagem mais carismático do filme, ao menos aos meus olhos altamente suspeitos, Ken representa de forma hilária a crise do macho na pós-modernidade. Fico assim no aguardo do spin-off que nunca será feito.