Conteúdo de Fluxo e Conteúdo de Estoque
Segundo Fernando Nogueira da Costa, professor do Instituto de Economia da UNICAMP, a distinção entre “fluxo” e “estoque”, em Economia, é crucial. “Fluxo” representaria o “movimento de um bem, serviço, moeda ou título financeiro, iniciado em um determinado mercado e realizado no interior da economia em seu conjunto”. O PIB, por exemplo, é uma variável de fluxo, pois é medido durante um certo período de tempo, seja trimestral, semestral ou anual. Já “estoque” trata da “quantidade de um bem, moeda ou título, armazenada, entesourada ou em conservação”. Nesse sentido, o número de pessoas empregadas, ou o total da dívida pública, são variáveis de estoque, cuja mensuração ultrapassa o tempo.
Em 2010, Robin Sloan publicou um texto no blog Snarkmarket, afirmando que “estoque” e “fluxo” eram uma metáfora útil para a mídia no Século XXI. De acordo com o autor, “fluxo” é o feed, o efêmero, o conteúdo em movimento no tempo. São os posts e os tweets, a transmissão diária de informação, e suas atualizações, que lembram o público que você existe. Já “estoque” seria o material durável, o conteúdo produzido que se mantém interessante em dois meses ou dois anos, aquele que se difunde mais lentamente, construindo fãs ao longo do tempo. No artigo, Sloan apontava a ascendência do “conteúdo de fluxo” naqueles dias, mas ressaltando a necessidade de construção de um “estoque” relevante. No fundo, os dois conceitos se complementavam. O truque seria juntá-los, numa estratégia híbrida.
Como exemplo, o autor cita o trabalho do cineasta Wes Anderson como “todo de estoque”. O segredo, segundo Sloan, é que outras pessoas faziam o seu “fluxo” por ele. Todo o esforço de relações públicas e propaganda que movia o fandom, mantendo sua presença viva no mainstream.
Na política pública de fomento ao audiovisual brasileiro, a opção pelo “conteúdo de estoque” é inegável. Os mecanismos de incentivo, de forma geral, excluem a possibilidade de que obras que não constituam o chamado “espaço qualificado” (nos termos do art. 2º, XII, da Lei nº 12.485/2011) sejam fomentadas. Dentre elas, por exemplo, conteúdos jornalísticos, eventos esportivos ou programas de auditório ancorados por apresentador. Em uma primeira análise, a vedação faria sentido, uma vez que o interesse por tais conteúdos se esgotaria na primeira exibição, enquanto os “conteúdos de estoque”, como filmes e séries de TV de ficção, documentário e animação, permitiriam uma “cauda longa” de licenciamentos (como no sistema de windowing), possibilitando a remuneração ao longo do tempo para o detentor de seus direitos, o produtor independente.
A realidade do mercado audiovisual, entretanto, é cada vez mais complexa. Como explicado em outro texto, a expectativa de remuneração de recursos oriundos do licenciamento de uma obra nas diversas janelas, para o produtor independente, é baixa. Muitas vezes, como nos projetos de TV, se restringe ao primeiro valor de licenciamento. A maioria sobrevive através dos orçamentos de produção. Nesse contexto, a vedação a determinados “conteúdos de fluxo” que pudessem oferecer alternativas de remuneração oriundas da primeira licença de exibição já não parece fazer tanto sentido.
Voltando à discussão inicial, alguns autores apontam que, embora a distinção entre “conteúdo de estoque” e “conteúdo de fluxo” permaneça válida, os avanços das tecnologias digitais, e seu impacto no formato das obras audiovisuais, estão borrando essas fronteiras. Alguns canais do Youtube, por exemplo, conjugam os dois conceitos de forma bastante natural, atraindo novas audiências. Se considerarmos a evolução no sistema de oferta de conteúdos, assim como as estratégias das principais plataformas de streaming já disponíveis, é possível compreender que as soluções híbridas mencionadas anteriormente devem fazer cada vez mais parte do menu dos consumidores.
Para a formulação das políticas públicas mais adequadas para o setor, trata-se de um cenário desafiador, e ao mesmo tempo, estimulante. De certo, chegamos ao tempo em que antigos conceitos, cristalizados inclusive nos textos legais e normativos, precisam ser revistos. O tal “espaço qualificado” deve ser ampliado, de forma a acompanhar a demanda real por conteúdo, e os novos modelos de negócios que surgem a reboque das transformações mencionadas. O futuro do audiovisual já chegou, impondo uma revisão geral das estratégias costumeiramente utilizadas para o fortalecimento dos agentes econômicos que atuam no mercado, e para o bem do público.