Manual da Internet ou Como Adestrar Algoritmos
A mídia é tóxica. À essa altura todo mundo já sabe, mas pouca gente tem consciência do próprio papel no processo de se intoxicar. Como sempre a culpa é dos outros. Tenho uma notícia pra você. Tem de tudo na internet. Se você só vê porcaria é porque está usando errado. Culpar a midia pelo seu envenamento cognitivo é como botar a culpa da sua pança na vitrine de tortas da padaria. Cultura é como dieta. Vivemos em um mundo repleto de junkfood e é impossivel evita-la completamente, mas isso não nos impede de comer melhor, uma escolha de cada vez. Quando se trata da internet, podemos traduzir essa analogia em uma heurística simples: se você não treinar o algoritmo, o algoritmo vai treinar você.
Comece com o seguinte teste: se você faz maratonas de conteúdos curtos que aparecem automaticamente nas sugestões da página inicial da rede social, o algoritmo está treinando você. Se você busca por assuntos que surgiram em uma conversa, cria listas por temas que gosta e explora conteúdos relacionados em diferentes plataformas, você está treinando o algoritmo. A premissa é simples: o algoritmo é ativo. Se você for passivo, ele te programa e o rabo logo estará abanando o cachorro. Você precisa corrigir e orientar as sugestões dos algoritmos constantemente, reforçando o que sua consciência indica e descartando ativamente as porcarias oriundas das bolhas de reforço algoritmico.
Pra não ficar na abstração, vou dar exemplos práticos disso em duas redes sociais: Twitter e Youtube.
No Twitter, você tem basicamente dois modos de navegação: “Para você” e “Seguindo”.
- “Para você”, significa exatamente o oposto do que diz. É um feed controlado, não por você, mas por um algoritmo cujo objetivo final é aumentar o faturamento publicitário do Twitter. Esse feed mostrará a você conteúdo de gente que você não segue, de assuntos que você gostaria de evitar e sensações que te provocam todo tipo de gatilho inconsciente.
- “Seguindo”, só mostra publicações de contas que você optou. Ser seletivo com o que você segue é o básico da higiene digital.
Isso não quer dizer que “Para você” não possa vir a ser útil, mas você precisa ser mais ativo nesse espaço. É onde entra a primeira técnica de adestramento de algoritmos:
- Reforço positivo: Boa parte do feed “Para você” terá postagens de contas cujos tuítes você curte com frequência. É o princípio do “toma aí mais do que você diz que gosta”. Isso significa que o critério para curtir ou não uma postagem não tem nada a ver com literalmente curtir ou não, mas quanto reforço você estará dando ao algoritmo para aquele nó de rede. Tem contas que eu gosto, mas postam muitas vezes por dia. Se eu curtir tudo, chegará o momento em que essas contas monopolizarão todo o feed em detrimento de outras de que também gosto mas que publicam com menor frequência.
- Reforço negativo: Além desse reforço positivo, há também o reforço negativo. No meio do feed aparecem coisas nada a ver com seu interesse, mas que estão lá pelo peso dos infames trending topics (fique longe deles). Para essas intromissões é que existem os três pontinhos no canto superior direito do tuíte, que abrem um menu de opções maravilhosamente libertadoras. “Não tenho interesse nesse Tweet” é a que mais uso, com as sub-opções “mostrar menos Tweets de @conta” (se o problema é a fonte) ou o simples e belo “esse tweet não é relevante” (que dá um prazer especial em usar em qualquer conteúdo sobre o BBB).
Pronto, você já está treinando o algoritmo, mas ainda existem duas outras opções simples e eficazes para a dedetização do seu Twitter:
- Block é vida: as pessoas levam a sério demais a simples atitude de bloquear uma conta, como se bloquear fosse um ato de agressão, um medida radical, que deveria ser reservada apenas a assediadores e nazistas. Bobagem. O bloqueio foi criado como um serviço para contas com muita audiência para se livrarem de trolls e haters insistentes. Ao ser bloqueados, eles não conseguem mais ver você.
- Silenciar: Para nós, meros mortais no mundo das redes, o problema não é ser visto por gente indesejável, mas ter que ver gente indesejável. Para o plebeu das redes, foi criada uma versão light do bloqueio, que faz 95% do trabalho. A opção “Silenciar”. O dito cujo continua vendo você, mas você não o verá. Isso quer dizer que o silenciado não sabe que foi silenciado e isso funciona mesmo que você continue seguindo-o. Perfeito até para aqueles casos em que você conhece pessoalmente a arroba, apenas não gosta do que ela publica on-line.
As opções acima podem não ter grande efeito de treinamento sobre o algoritmo, mas entenda isso como uma regulagem manual que você pode fazer nesse veículo de comunicação preponderantemente controlado pelo piloto automático. Bloquear e silenciar é por vezes a única forma de se livrar definitivamente de contas tóxicas, burras, ou toxicamente burras como presidentes da república, polemistas famosos e o Felipe Neto. Silencie o Felipe Neto.
Por fim, há uma ferramenta que considero ser a porta para uma nova experiência do Twitter. Uma espécie de Twitter 2.0:
- Listas: Você não precisa seguir uma conta para acompanhar suas publicações. Adicionando a conta à uma lista, você tem acesso às postagens em ordem cronológica, sem a interferência do algoritmo sabichão. Melhor de tudo: você pode criar múltiplas listas, organizadas por assunto. O resultado será um Twitter para cada humor seu. Uma lista com as pessoas que você conhece, uma só com notícias, outra com contas que falam de futebol… Se você segue muita gente, seu feed principal vira um ninho de rato e uma torre de babel. Dá impressão de estar zapeando a TV, um clique por segundo. Listas resolvem esse problema. Podem ser criadas para acompanhar a copa do mundo e deletadas em seguida. Listas são a ordem no caos do Twitter. Use-as e deixe para seguir apenas as contas realmente relevantes pra você.
No YouTube, os princípios do adestramento de algoritmos são os mesmos, com pequenas adaptações.
Seu feed de verdade (curado por você) está no item “Inscrições”, onde só vão aparecer videos de canais que você segue. Increva-se em canais de forma consciente e esse será seu santuário sagrado. O feed principal (“Início”) é um oferecimento do seu amigo algoritmo. Só será minimamente útil e saudável depois de muito, MUITO treinamento. Mas não se preocupe, depois que você pega o hábito, treinar o algoritmo se torna uma segunda natureza e não parece esforço algum, composto daquela nossa heurística:
O reforço positivo é o joinha e o comentário. Quanto mais você interage com o video, maior o reforço positivo para que o algoritmo te sugira outros da mesma conta, com as mesmas palavras-chave ou vistos por outras pessoas de perfil semelhante. Mesma regra: use com critério e moderação, não importando o quanto o simpático youtuber implore pra você curtir.
O reforço negativo é marcar o polegar pra baixo (“não gostei”). Não é nada pessoal, mesmo que o administrador do canal não entenda dessa forma. É apenas a ferramenta que você tem ao seu alcance para aumentar ou diminuir a prioridade dos conteúdos a que seu pobre cérebro pós-moderno está exposto. Use com moderação, mas sem medo. Uma observação: o comentário negativo é inefetivo e não serve para adestrar o algoritmo. Ele é burro demais pra diferenciar e vai entender como engajamento, ou seja, reforço positivo (e isso explica muita coisa na internet). Não gostou? Não comente. Ao menos disso você pode poupar o esforçado administrador do canal.
Listas, no Youtube, funcionam de forma diferente do Twitter. Infelizmente, você não pode fazer listas de canais (que seria maravilhoso), mas pode fazer listas de vídeos, começando para a lista padrão da interface, “Assitir mais tarde”. Encare essa lista como uma peneira. Ela crescerá muito mais rápido do que você dará conta (como sua prateleira de livros em casa) mas não importa: ela é uma fonte melhor que o feed do algoritmo. O passo adiante é criar outras listas. Por exemplo, tenho uma lista “AUDIO” onde salvo os videos em que a imagem não é essecial, como podcasts ou aqueles fundamentalmente narrados. Uso essa lista nas minhas caminhadas. O critério é seu, mas suas listas de espera podem ser muitas e, importante, terão recortes que você escolheu. Certamente é melhor que migrar para shorts ou tiktok só pra não ter crise de ansiedade com videos com mais de dois minutos de duração. Attention span de peixe de aquário é doença e a cura é curadoria.
Os princípios dessa heurística podem ser usados nas outras redes, como Instagram, Facebook e TikTok com pequenas adaptações. Alguém vai notar que não abordei aqui as ferramentas de denúncia. A razão é que a denúncia, por si só, não tem impacto no comportamento do algoritmo de sugestão e sim o bloqueio que geralmente a acompanha. Além disso, o foco aqui é higiene pessoal. Higiene social é outra coisa, cuja utilidade e legitimidade são no mínimo questionáveis. Mas isso é outro assunto e Deus me previna de algum dia escrever sobre ele. Agora vá e seja feliz.