I. O Grande Dia
– Hoje é o dia, hein?
Zé Augusto entrou no elevador do prédio decadente onde funcionava a repartição, pronto para um dia especial de trabalho. Em toda manhã, gostava de fingir intimidade com o Seu Jair, ascensorista que trabalhava no local há décadas. Afinal, antes de se tornar a sede do Instituto onde Zé era servidor concursado, aquele velho edifício já tinha abrigado a ascensão e a queda de muitos outros órgãos públicos, e o velho era uma testemunha viva de tudo aquilo.
Como sempre, Seu Jair respondia em monossílabos, se esforçando para parecer atento. No fundo, o ancião tinha verdadeiro asco do comportamento de Zé Augusto, que sempre dava um jeito escroto de furar a fila do elevador, normalmente entabulando alguma conversa supostamente urgente com alguém que chegara mais cedo. Naquele exato momento, tinha usado o mesmo expediente com a gerente de RH, discursando com ênfase sobre a necessidade de se aplicar com rigor as regras de isonomia e equidade vigentes.
– Todo o nosso compliance só alcançará o estado de plena eficácia quando os colaboradores perceberem que precisamos de um turnaround completo na cultura organizacional, em linha com a missão e os valores definidos no último planning.
Durante anos a fio, Zé tinha trabalhado duro por uma vaga na diretoria, e já podia sentir o aroma da vitória. Enquanto os andares se sucediam, ele rememorava todos os pequenos acontecimentos em que a arte de fingir, trapacear e ser desleal com os possíveis rivais tinha sido o seu maior trunfo na batalha pelo reconhecimento de suas qualidades excelsas.
Antes de se tornar funcionário público, Zé Augusto também tinha acumulado um sem número de ressentimentos atuando na iniciativa privada, onde nunca se destacou. Mas, desde que passou no concurso, tudo mudou. O Instituto era o ambiente ideal para ele exercitar um estilo corporativo refinado, desenvolvido ao longo dos anos, resultado de muita leitura de manuais de auto-ajuda e revistas de negócios, além de encontros, seminários, workshops, simpósios e uma lista interminável de eventos de capacitação bancados pelo erário. Adotando em público uma postura pegajosamente demagógica com os colegas, em privado se envergava subserviente, às raias da humilhação, para cada um dos chefes a quem tinha servido como um capacho.
Mas agora ele acreditava ter chegado ao clímax de sua escalada carreirista: era o dia em que o presidente finalmente indicaria o nome do novo diretor do Instituto.
Em seu próprio departamento, estava longe de ser uma unanimidade. Na coordenadoria de “gestão estratégica”, muitos já conheciam seu espírito traiçoeiro, e faziam questão de manter reserva em relação a ele. Mas Zé também tinha o seu pequeno séquito de puxa-sacos. Afinal, o Instituto era uma fogueira de vaidades, com Zés Augustos em todos os setores, boquejando em reuniões intermináveis sobre assuntos absolutamente irrelevantes. Todos levando a sério demais qualquer decisão, como a licitação para compra dos novos copos de café ou a norma interna para definição de um “dress code” mais adequado, o que configurava um quadro involuntariamente ridículo. Uma fauna completa de barnabés, caricaturas típicas do anedotário do serviço público.
Para ele, não havia qualquer dúvida de que sua vez tinha chegado. Afinal, vencera todas as batalhas importantes. Tinha desmoralizado os desafetos. Aproveitado todas as oportunidades. Chupado as bolas certas. A alta cúpula se reuniria hoje para indicá-lo. Na sua conta, eram favas contadas. Afinal, especialmente na última semana, Zé tinha bajulado com requintes de constrangimento os diretores com direito a voto. Não tinha como dar ruim.
Perto do último andar, onde ficavam as salas dos diretores, somente Zé e outro colega ainda restavam no elevador, além do Seu Jair. Aquele ritual era como um bálsamo para Zé Augusto: ver cada um dos servidores desembarcando nos andares mais baixos, enquanto ele permanecia seguindo para o alto e avante. Em cada mudança de cargo, fazia questão de garantir uma sala mais perto do topo, e agora já ocupava o penúltimo andar, o que para ele era motivo de nítida satisfação.
– E aí, Mendes? Preparado para as mudanças?
O colega não dá muita bola, pois já tinha sofrido na pele com a creontagem de Zé Augusto. Respondia a cada pergunta com educação, mas claramente tentava desviar dos assuntos e se manter quieto, mexendo no celular. Quando Mendes deixa o elevador no antepenúltimo andar, Zé faz um comentário maldoso para Seu Jair.
– Esse aí já morreu e não sabe… Coitado, não sabe se posicionar.
O fato é que ele se lembrava perfeitamente do dia em que tinha furado o olho do Mendes, na frente de toda a diretoria, simulando indignação quando o colega confessou não ter em mãos os últimos números do setor. Zé Augusto sabia que Mendes, naquela ocasião, estava substituindo de forma provisória o próprio chefe, obrigado a realizar uma viagem particular de última hora. Aquele episódio ilustrava com perfeição o modus operandi ardiloso de Zé, sempre persistente na tarefa de sair bonito na foto e queimar todos aqueles que julgava como rivais.
O elevador chega ao penúltimo andar. Quando a porta se fecha logo após a saída de Zé Augusto, Seu Jair finalmente solta o ar preso nos pulmões, e murmura para si mesmo:
– Péla-saco do caralho…