O Grande Líder

O Grande Líder

Monumento ao Burocrata Desconhecido, em Reykjavik, Islândia, de Magnús Tómasson (1994)

“É um grande quadro”, diziam, como se falassem de um Caravaggio. Mas era dele que falavam, repetindo esse mantra com tom meio religioso. Reinava sobre seu minúsculo feudo com a altivez de um César, despachando processos e cobrando prazos como se as fundações da Terra dependessem de seus préstimos. Tudo mise-en-scène, claro, pois seus interesses e preocupações mais sinceros estavam longe dali, na Capital. Tinha pelo funcionamento de seus escritórios um desprezo indisfarçável, mas, rigorosamente disciplinado por uma absoluta falta de infância, jamais permitia se trair por esse asco. Pelo contrário: conduzia cada despesa, cada despacho, com atenção aterradora, metendo medo no mais obsessivo e orgulhoso dos burocratas sob sua égide. 

Temê-lo era uma religião institucionalizada no “setor”, que era como chamavam o conjunto de todos aqueles que viviam ou gostariam de viver do dinheiro destinado à sua pasta. Entre seus asseclas o temor transfigurava-se em uma fidelidade apavorada. Como uma matilha de perdigueiros, acotovelavam-se e mordiam-se uns aos outros em frenética disputa por sua aprovação, quiçá sua preferência. Nesse afã, corriam pelas matas da administração pisoteando a lama e rosnando em guerra cega pela primazia em apontar uma presa, desentocar uma praga e jogar aos pés do amo o agrado, urinando-se à menor passada de mão pela cabeça. O mestre se comprazia do expediente sem disfarces. Era com um tremor sádico que jogava seus cães uns contra os outros. Tinha abnegada convicção de ser essa a melhor forma de manter todos os outros acuados, cercados constantemente pelos uivos triunfais de sua matilha. Assim podia dedicar-se ao que importava. E nada importava mais que as incursões que fazia frequentemente fora de seus domínios, abrindo picada hierarquia acima, mapeando fraquezas, ganhando confianças, distribuindo influências. Tudo movido pelo propósito imperioso de colonizar todo centímetro de terra em que pusesse os pés. 

Jamais alguém soube o que planejava para além de manter o que tinha e obter um bocado mais. Se tinha alguma missão divina em mente, se sonhava com algum legado, nem seus mais próximos tinham ideia, até porque ninguém, absolutamente ninguém, era seu próximo. Ele não fazia confidências, não respondia a provocações, não comentava escândalos, mesmo e especialmente se fosse o alvo. Se dava informação, com certeza estava plantando. Quem saía de seu gabinete crendo que gozava de sua confiança caía logo num alçapão antes de passar pela secretária e aparecia na rua, já preso por fios ligados ao titereiro. Não via distinção alguma entre aqueles que se debruçavam suplicantes nos balcões e os que carimbavam certidões em seus cubículos. Cliente ou funcionário, cidadão ou preposto, estavam para ele como a tainha e robalo para o pescador que os liquida na mesma lançada de rede. Sob seu reinado o número de cardumes que se atiravam cegamente no arrastão cresceu no mesmo ritmo em que o culto à sua personalidade assumia contornos de coisa onipresente. Seus súditos já não eram capazes de tomar um simples cafezinho sem sentir o peso de sua sombra.

Surgiu então o temor de que um dia o grande líder lhes faltasse. “O que seria de nós?”, perguntavam-se uns, enquanto outros propalavam a heresia de que seria qualquer outro, indigno de sentar-se um dia no trono do infalível. Só de pensar nisso era o horror. As faces crispavam-se, cabeças balançavam e sinais da cruz eram executados. Esse medo, pouco a pouco transformado em especulação mórbida, foi alimentando o desejo dos inimigos e a fantasia das vítimas mais vingativas. Como o tempo é implacável, mas não menos implacável do que a política, chegou o momento que o grande guia tinha convencido meio mundo a evitar. Mas não foi sem guerra sucessória que a transição ocorreu. Pelo contrário. Foi uma carnificina de ruborizar um Khan. 

Um a um, os que ousaram almejar seu trono foram abatidos por flechas que vinham dos mais insuspeitos arcos, inclusive dos seus próprios. Reivindicar o lugar do sumo condutor era, mais que heresia, uma aposta quase suicida, do tipo vencer-ou-morrer. Em pouco tempo, a parede do gabinete já era enfeitada pela galhada de muitos incautos. Ninguém poderia acusar o homem de não ter resistido até o fim. Tinha tantas cartas na manga que houve quem contasse dois ou três ases do mesmíssimo naipe disparados por suas mãos febris naquele strip poker em que se convertera todo o “processo político”, como ele gostava de dizer. Quanto mais o destino fatal ganhava contornos, mais dedicado era seu compromisso com a vitória. Nos momentos finais, perdeu quaisquer escrúpulos: dormiu com inimigos, traiu aliados, vendeu a mãe e não entregou. 

Até que o impensável ocorreu, com a frieza cruel e indiferente que somente a capital pode ter. Um ato ordinário, publicado numa esquina sórdida de diário oficial, ao lado de uma licitação de café, selou o destino da lenda, dizendo em duas linhas que o cargo agora era de outro. O silêncio dos dias seguintes foi ensurdecedor. O próprio tempo paralisado pelo assombro. Mas a perplexidade foi superada pela altivez, alguns diriam insana, do próprio chefe. Em poucos dias já corriam especulações de sua designação para o comando de uma dúzia de outros feudos. O homem mantinha a mesma diligência de sempre como se nada, absolutamente nada, tivesse acontecido. Já eram apenas seus auxiliares menos importantes que choravam nos banheiros e sussurravam pelos corredores como almas penadas, cães que não puderam juntar-se à caravana a tempo da partida. Mas nada que ocorreu antes ou depois foi mais emblemático do que seu ato final. 

Já nos estertores de seu encargo, mandou contratar um famoso escultor. Sem medir despesas, comissionou a tarefa de produzir uma estátua de si mesmo. A notícia causou comoção. Imaginaram que a escultura seria posta sobre um pedestal no lobby suntuoso que sua administração reformara. Mas não. O escultor, conhecido por fazer daquelas homenagens brônzeas pós-modernas, em que o escritor fica eternizado num banquinho de praça e a atriz se debruça eternamente no corrimão de uma pontezinha, logo rechaçou a ideia de ver o homem sobre um pedestal, enaltecendo, ao contrário, a qualidade deveras humana de seu retratado. Como o líder nunca sentou numa praça, nunca se debruçou numa ponte, a solução cobriu-se de mistério. Até a posse do novo dirigente, que já assumira o cargo demissionário, fustigado, com o terno rasgado e respondendo a vinte processos. 

Chegando ao gabinete para sua primeira reunião, o recém empossado infeliz encontrou a estátua do antecessor chumbada na cabeceira da mesa de forma tão reforçada, que dali não sairia sem que o prédio inteiro ruísse. E foi assim que, pelos anos que se seguiram, toda reunião, todo despacho, todo ato oficial de cada esfarrapado sucessor foi executado, constrangedoramente, sob o olhar inquisitivo da imagem e semelhança do lendário líder, eterna esfinge, como sempre foi, reprovando tudo. Absolutamente tudo.    

Daniel Mattos

Daniel Mattos

Nasceu em Petrópolis, em julho de 1975 e recebeu o nome de Daniel Vidal Mattos. Desde então está em busca de respostas sobre o que é ser Daniel Vidal Mattos, nascido em Petrópolis em julho de 1975. Não se parece com a foto aqui publicada.

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