Queimando Café
Quando olho a crise do audiovisual brasileiro hoje, lembro imediatamente da crise do café no começo dos anos 30.
A quebra da Bolsa de Nova York em 1929 causou uma das maiores crises da economia mundial. No Brasil, a produção de café, principal produto de exportação à época, foi fortemente atingida. As exportações de café caíram à metade entre 1929 e 1932. O preço do produto se reduziu em um terço apenas em 1931. Numa medida desesperada para conter a queda no preço do café no mercado internacional, o então presidente Getúlio Vargas, ordenou que milhares de sacas de café fossem queimadas.
A decisão, que custou o cargo do então ministro da Fazenda José Maria Whitaker, que discordava frontalmente dela, gerou muita discussão à época e é debatida até hoje. Mas o fato é que mais de 70 milhões de sacas foram queimadas ao longo de meio ano na baixada santista. O cheiro de café se espalhou pelo litoral paulista. A produção destruída poderia suprir o consumo mundial durante três anos. Nessa fogueira queimou também a República Velha, abrindo espaço para um modelo econômico mais diversificado e baseado na indústria.
Até hoje se discute no campo da economia se a ação foi acertada ou não. Depende apenas se seu viés é keynesiano (popularmente chamado de desenvolvimentista) ou liberal. Para Celso Furtado, o valor da produção destruída era muito inferior ao montante de renda criado. Liberais afirmam que esse foi mais um episódio de socialização de prejuízos.
Discute-se os remédios mas não há muito a discutir sobre a doença, o incontornável fato de que a economia se fragiliza pela dependência de uma commodity e, como agravante, uma economia centrada na produção e no preço, mas não no comércio e no valor.
“Nada tem valor se não tiver utilidade. Se algo é inútil, assim também será o trabalho ali contido. Trabalho não conta como trabalho e portanto não cria valor.”
Antes que alguém se apresse em julgar essa afirmação como um arroubo “neo-liberal” (seja o que for que isso signifique) ou uma ode à “meritocracia” (no sentido ruim que muitos têm dado à palavra) façamos a identificação da fonte: é Marx, no fim da primeira seção do Capital.
O capital só realiza o valor quando circula e, ao circular produz também desvalorização, um risco sempre presente no processo de precificação. O valor incorporado na mercadoria pelo trabalho é perdido nessa trilha repleta de perigos. O mesmo processo que dá valor a mercadoria, esgota esse valor. Essa oposição existe mesmo no ato de troca, pois uma mercadoria tem que ter um valor de uso para seu comprador e um valor de não-uso para seu vendedor.
O trabalho cria valor, sim, mas a circulação do capital realiza o valor. Não se pode confundir o valor agregado a algo pelo trabalho e pela criatividade com alguma noção garantista em relação ao preço. O mercado audiovisual (e de conteúdo cultural de forma mais ampla) vem comprovando isso de forma dolorosa há mais de um século.
Todo empreendedor sabe que o sucesso de seu empreendimento só é assegurado quando seu produto é vendido por um valor monetário maior do que aquele que inicialmente despendeu em salários e meios de produção. Mas o processo oposto, de desvalorização capaz de quebrar o empreendimento, é parte intrínseca desse processo e muitos se esquecem disso. É a realização do valor que oferece o outro lado da moeda nos riscos da precificação a mercado. O comércio realiza o valor e, assim, esvazia de valor para que o ciclo recomece. Não há construção de valor sem destruição de valor. Mas isso nada tem a ver com a ideia de um jogo de soma zero, no qual aquilo que alguém ganha é exatamente o que outro perdeu, mas um sistema muito mais complexo. Nos resta buscar meios de fazer com que a primeira operação supere a segunda no cômputo final.
Tanto a perspectiva quanto a realidade da desvalorização, do esgotamento do valor, estão sempre presentes. Essa dicotomia tem que ser superada (redimida, por assim dizer) para que a produção de valor sobreviva às vicissitudes da circulação.
Capital é valor em movimento. Qualquer pausa ou mesmo desaceleração nesse movimento, seja qual for a razão, significa perda de valor. O ano de 2020 demonstrou isso de forma dolorosamente exemplar. O valor pode ser ressuscitado em parte ou totalmente, mas somente quando o movimento do capital é retomado. Se isso é verdade na economia de forma geral, na economia do mercado de conteúdo cultural trata-se de uma condição sine qua non de existência.
Dito isso, é importante ainda ressaltar o problema da opcionalidade, que é a questão central deste texto. Nassin Taleb, estatístico e polemista americano, um empiricista cético com diversos livros publicados, costuma insistentir na afirmação: “x não é f(x)”. Os ganhos ou perdas derivados do valor input não são proporcionais a este no output (preço, lucro, prejuízo, etc). Pelo contrário, são exponenciais. Sempre. Fenômenos sociais e culturais como o mercado, a indústria de conteúdo e entretenimento e ainda mais o mercado de cultura e entretenimento, não obedecem a distribuições estáticas gaussianas (a chama bell curve), mas a distribuições convexas ou de “caudas gordas” (gordas, não longas).
Existem campos em que se observam distribuições normais, mas o campo do impacto de objetos culturais não é um deles. Trata-se de um campo de distribuições leptocúrticas e de convexidade radical. Lidar com a circulação de signos não é lidar com biometria. Ninguém que mede um metro aos 7 anos de idade, medirá 20 metros em algum momento da vida. Mas um filme que custou 100 mil reais pode fazer 100 milhões. Nesse mesmo mundo, a maioria dos filmes não fará nem 100 mil de renda nas salas, não importa o quanto foi colocado nele de esforço, densidade artística e valor de produção. Isso são fatos. É loucura ser juiz dos fatos e tolice ser juiz das circunstâncias.
Já é proverbial a imprevisibilidade da recepção de um conteúdo audiovisual pelo público. Os riscos são grandes e a visibilidade é baixa. Muitas tentativas foram feitas, mas ninguém ainda decifrou as engrenagens internas desse sistema complexo que conecta arranjos de signos com a resposta opcional das pessoas. Mesmo com todo o hype e mistificação sobre os algoritmos dos provedores de VoD, eles mesmos admitem que selecionar projetos é um trabalho demasiado humano. Essa é a razão pela qual a criação está no centro dessa indústria. Então a questão que se apresenta é: se não somos capazes de compreender esse ecossistema, como viver em um ambiente que não compreendemos? Cito novamente Nassim Taleb, que afirma: compreender é um substituto pobre para a convexidade. É preciso humildemente assumir e mapear o território da nossa ignorância estabelecendo estratégias para lidar com a incerteza, nos posicionando para colher os frutos de qualquer resultado e sobreviver aos efeitos de qualquer choque ou disrupção. Essa postura é superior a teimosia em forçar sobre uma realidade múltipla e fugidia alguma taxonomia politicamente negociada ou a truculência de tentar forçar alguma planificação autoritária que busque submeter a dinâmica coletiva às nossas concepções quando claramente é o oposto que deve ser feito.
É por isso que os criadores são centrais nesse ecossistema. Para que a cadeia de criação de valor cresça é preciso uma miríade de criadores conectados a uma multiplicidade de produtores independentes, competindo e fornecendo conteúdo diverso e inovador a um conjunto altamente competitivo de agregadores capazes de suportar quantos fracassos forem necessários para produzir um sucesso. Essa é a natureza do ambiente cultural em uma sociedade moderna. O risco econômico, o risco da irrelevância, são o ar que a cultura respira. O valor só emerge no processo de circulação que arrisca obliterar esse valor. Portanto é destruidor qualquer ambiente garantista que tente eliminar o ele tem de crucial: criadores e empreendedores com a pele em jogo. Onde não há risco de fracasso não há risco de sucesso. Onde há imposição de “normalização” de resultados, há garantia de destruição de valor. Como disse Frank Borman: capitalismo sem falência é como cristianismo sem inferno. Esse é o real perigo que corremos hoje na sociedade global.
A ideia de que retornos de cauda não compensam seus custos ou de que riscos de cauda são negligenciáveis é a receita do desastre. É preciso reconhecer que o fracasso deve ser fomentado e que financiar o fracasso é garantir o sucesso. Da mesma forma, pelo lado oposto da equação, é preciso abandonar qualquer expectativa de direito ou garantia de credibilidade pois o resultado passado não permite inferência sobre resultado futuro e a probabilidade de ocaso deve ser tão real quanto a possibilidade de ascensão. Não se pode esperar que uma multidão humilhada de amadores, criando nas horas vagas de forma auto-financiada, formem uma base sólida para uma indústria cultural. Da mesma forma não se pode conviver com o tombamento de biografias e reprodução ad-eternum de oligopólios e privilégios politicamente conquistados e mantidos por mecanismos patrimonialistas anacrônicos. Essas duas forças produzem o empuxo vertical descendente constante que não permite que deslanche de uma era de explosão criativa que já vai se demorando em começar há pelo menos cinco décadas.
Veja que esta não é uma crítica ao mercado cultural brasileiro, ou aos vícios estruturais da nossa sociedade ou às políticas culturais do nosso país em particular. Boa parte do mundo hoje padece de alguma forma própria dessas contradições. Da moderna teoria monetária ao capitalismo de estado chinês, da proliferação de bullshit jobs no setor de serviços (trabalhos inúteis e sem sentido, porém bem remunerados, descritos no livro homônimo de David Graeber) à epidemia de transtornos de depressão e ansiedade que afetam milhões de pessoas alienadas de seu propósito e talento, o mundo de hoje está repleto de sinais inequívocos de que a demora na transição real para uma sociedade pós-industrial e criativa vem cobrando um pesado preço com o qual não se pode mais arcar.
Paremos de repetir os mesmos erros esperando um resultado diferente. No Brasil isso significa que precisamos parar de queimar café. Precisamos criar um ambiente que estimule as pessoas criativas a desenvolver e oferecer suas idéias. Precisamos criar um ambiente em que tamanho e história não sirvam de salvo conduto à privatização de lucros e socialização de prejuízos. Só existe um ecossistema de produção cultural saudável onde o pequeno pode subir e, mesmo que não suba, pode sobreviver; no qual o grande pode cair e pode sobreviver mesmo que caia. Não há lugar para binarismo e polarização no futuro. A virtude mais rara e mais necessária hoje é o senso de proporção. Nenhum sistema de pensamento pré-fabricado substitui o bom senso. Nenhuma previsão supera a boa heurística. A realidade não se importa se você acha que está certo. A lógica não é uma alternativa à dialética. A estética não tem ascensão sobre a ética. Criar está no centro. O resto é periférico.
Continua em Queimando Café (parte 2): O Esquema de Pirâmide na Economia do Dom