Crise (Introdução) – A Carta de Gabriel

Crise (Introdução) – A Carta de Gabriel

Por muito tempo esperamos o fim do mundo, o apocalipse, o Armagedom, chame como quiser. Sempre esperamos que sua chegada seria espetacular, um cataclismo indiscutível que pararia o mundo, com choro e ranger de dentes. Alguns de nós esperavam com temor, outros com ansiedade e mais uns com excitação. O fim da civilização como conhecemos levaria com ele também as angústias, o vazio de sentido, o peso do dever e da culpa. Enfim, fosse como fosse, ao menos algo aconteceria finalmente e, quem sabe, o juízo final poderia ser de alguma forma libertador, não é?

Bem… Não foi assim. Enquanto esperávamos pelo apocalipse, o mundo foi se acabando lentamente num processo constante de deterioração de tudo que se costumava chamar “econômico”, “social”, “ambiental”, palavras que não fazem sentido algum hoje e que também já não faziam sentido na época. Não é que as pessoas, mesmo as mais fortes, a mais inteligentes, fossem impotentes diante do que estava acontecendo. O que ocorreu é que mesmo essas pessoas assistiram a tudo com apatia, esperando algum grande sinal que os autorizasse a agir, mas o fato é que ninguém queria fazer coisa alguma. Afinal, conforme a situação piorava restava nos voltarmos para nossa própria sobrevivência e de nossos entes queridos. Aliás como sempre havia sido, desde a pré-história, mas vivíamos tempos curiosos, em que essa noção não se passava pela cabeça de ninguém.

Conforme a vida comum foi desandando, cada um reagiu de uma forma diferente, entre a esperança e o desespero, mas sempre consumidos pela insanidade coletiva que acometeu a todos: a incerteza. Ninguém queria ser o primeiro a dizer que estava tudo indo pro abismo. Ninguém, exceto Antonio, meu irmão.

Quando o reencontrei, após um retiro de muito anos nas montanhas, Antonio parecia ser o único que, como eu, percebia claramente o que estava acontecendo, embora de forma muito diferente da minha. Foi assim que reencontrei minha família, tentando permanecer unida e sobreviver a um apocalipse em câmera lenta, vivendo uma espécie de purgatório em que o colapso de tudo virou coisa banal. Como me disse meu irmão, no dia em que o encontrei: “o mundo que existia já não está aqui, mas ele nunca acabou”.

Quando desci das montanhas e não pude reconhecer o mundo para o qual voltei, não parecia claro pra ninguém o que tinha acontecido ou sequer se algo tinha acontecido. Havia conflito de versões, boatos e acima de tudo indiferença. O que se passou com as instituições, as cidades e os engenhos de outrora não se comparava com dano que parecia ter sido feito à mente e ao espírito das pessoas.

Com o passar do tempo as notícias ficaram mais e mais fragmentadas e pouco confiáveis. A única pessoa que conheci que parecia interessada em compreender a cadeia de causa e efeito que nos levara àquele purgatório era minha sobrinha Pandora, a caçula de Antonio. Ela passou muito tempo seguindo a trilha de migalhas da espiral da Crise. Nunca entendi oque a levou a ter essa curiosidade e dedicação. Talvez porque seu pai era um dos poucos que fala das coisas como elas realmente eram ou talvez seja porque ela nunca tenha visto o mundo do qual eu e Antonio nos lembramos. Cada vez há mais gente como ela. Jovens que sequer sabem que, há pouco tempo, vivíamos o dito auge de uma civilização. De novo, palavras que já não dizem nada à ninguém.

Pandora (imagem: https://imgur.com/a/6C9RC)

Pandora compôs um mosaico de pistas, como se investigasse um crime de livro de mistério, cheio de suspeitos. Uma seca na Eurásia, meia dúzia de depressões econômicas, crise humanitária, refugiados, instabilidade política, assassinato de primeiro ministro, golpe de estado, guerra civil. Palavras que precisavam ser definidas para ela por Antonio, por sua avó Luciana e por mim, embora muitas dessas coisas me soassem tão estranhas quanto à ela. “Guerra da Água”, “epidemia da bomba suja” e outras conspirações eram em sua maioria fantasiosas, mas era as pistas que ela tentava seguir. Queria entender por que os Estados Unidos eram tão importantes e de repente tão perigosos. Por que lutar uma guerra em múltiplas frentes é mal negócio e porque chamamos de “atentados” atrocidades que vão muito além da mera tentativa. Claro, ela queria saber tudo sobre “armas nucleares”, “grupos radicais”, o que é e como pode existir afinal uma “comunidade internacional”. Me lembro até hoje de sua primeira pergunta para mim: o que é uma “infraestrutura”, como ela “entra em colapso” e (poucos dias depois) como funcionava o “sistema financeiro” o que “créditos de carbono” têm a ver com “aquecimento global”.

Enfim, como disse, cada um, inclusive nessa família, tem um caráter único em sua forma de lidar com as coisas como elas vieram a ser no curso de nossas vidas.

Antonio fica repetindo que somos representantes da última geração que viveu o “apogeu da civilização”. Me pergunto qual civilização acaba ao mesmo tempo em que vive seu apogeu, mas talvez seja exatamente assim que as civilizações se acabem. Como todo homem truculento, Antonio é cheio de princípios. O fato é que meu irmão foi tomado como louco quando disse a todos que “o fim estava próximo”. Por alguma razão essa frase era sinônimo de loucura. Talvez porque a forma correta fosse: o começo do fim está próximo, mas o fim não chegará jamais. Essa forma de dizer o que estava por vir seria, além de mais precisa, muito mais assustadora. Enquanto riam dele, Antonio se preparou. Hoje é chefe de clã, em sua declarada guerra defensiva contra tudo que está fora de sua família e sua comunidade. Ele é contraditório. Em alguns momentos é paternal e protetor e em outros age como um gangster. Todos vivem sob sua sombra. Muita coisa já se passou entre eu e meu irmão. Tanta coisa que já não é meu lugar dizer-lhe que está tragicamente destinado a fracassar, que sua tentativa de manter a ordem tradicional das coisas e a coesão da família em torno de si só pode ter um resultado: Antonio será enterrado com o mundo em que nasceu.

Meus sobrinhos mais velhos, Abel e Caio são os braços direito e esquerdo de Antonio, mas eles têm temperamentos opostos vivem em rota de colisão um com o outro e com o pai.  Abel se parece mais comigo do que com o pai, o que é provavelmente pior pra ele. Quer transcender esse mundo. Sonha em abandonar a cidade decadente e viver na natureza selvagem. Ele crê que outra vida é possível. Caio, pelo contrário, mergulha na imanência, desafia qualquer ordem moral, quer ver o circo pegar fogo e busca o prazer. No fundo é o mais triste e desesperado de nós porque é escravo do ressentimento e da revolta. Mas admiro sua coragem. O rapaz é destemido e capaz de se arriscar para lutar contra os inimigos da família.

Pandora é a pessoa mais sensata da família, Ela é indomável e não se intimida. É curiosa e corajosa. Explora os lugares proibidos, conhece pessoas, se apaixona. É amada e protegida por todos. Acho que ela é a única capaz de salvar a família da destruição e, uma dia, revelará uma força inesperada. Pandora é minha maior esperança.

Daniel Mattos

Daniel Mattos

Nasceu em Petrópolis, em julho de 1975 e recebeu o nome de Daniel Vidal Mattos. Desde então está em busca de respostas sobre o que é ser Daniel Vidal Mattos, nascido em Petrópolis em julho de 1975. Não se parece com a foto aqui publicada.

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