I. Eu não fumei a gonga

I. Eu não fumei a gonga

– Vai passar o ano novo onde, Roserite? – Perguntou Filho, antes de dar um tapa numa minúscula ponta de baseado.

– Ainda não sei. Tô esperando o Martin me convidar pra boa naquela casa de praia que o pai dele aluga todo ano.

Sentado à beira de um gramado em frente à loja de conveniência onde costumavam passar as noites de vadiagem, Martin não ouviu a referência, pois seus pensamentos estavam voando. Tinha acabado de fazer o vestibular para faculdades longe do Rio de Janeiro, e enquanto os resultados não saíssem, seu mundo parecia num estado de animação suspensa.

– Sabem quem tem casa lá naquele condomínio? – Continuou Roserite, já sabendo a resposta: – Aquela doida que o Zoila pegava. Como era mesmo o nome dela?

Gabriel “Zoila” não respondeu, pois agora era a sua vez de apertar os lábios tentando torrar o restinho de maconha que ainda sobrava na guimba. Era famoso por não desperdiçar nada, literalmente queimando tudo até a última ponta.

– A Medéia?! – Exclamou Kitz, começando a gargalhar – Puta que o pariu, Zoila! Tu tem que dar uns pegas na velha de novo, porra! Vai garantir o nosso réveillon!

Já com dificuldade para não queimar os dedos, Zoila dá uma última tragada e se livra do flagrante, antes de responder:

– Liguei pra ela ontem.

Kitz, Filho e Roserite caem na risada. Zoila era muito sagaz. Já tinha se ligado que a Medéia era cheia da grana. Ou melhor, que o ex-marido dela era podre de rico. Mas a mulher era borderline, louca de pedra. Na última vez que se pegaram, a doida tinha trancado Zoila num apartamento e jogado a chave pela janela. Passaram um fim de semana inteiro fodendo e se drogando. Medéia tinha acesso a todo tipo de entorpecente: erva, pó, ácido, êxtase, lança-perfume. Gabriel gostava muito de tudo aquilo, mas até ele conhecia limites. Só saíram dali quando um funcionário da escola que ela dirigia (!?) bateu na porta, preocupado com o sumiço da patroa, que não atendia as ligações. Como não acharam a chave, tiveram de arrumar um chaveiro para livrá-los do cativeiro.

– Boa, moleque! – Comemorou Flávio “Kitz”, já se imaginando em alguma piscina do condomínio “Montanha Russa”, que ficava ao lado de uma praia particular.

– Tu é maluco, cara! – Comentou Filho, lembrando das muitas situações bizarras por que Zoila já tinha passado ao lado da Medéia.

– Tu diz isso porque sempre vai com o Martin, né filhão? – Rebateu Roserite, ironizando: – Ser cunhado do cara tem essas vantagens.

– Todo fim de ano e carnaval o moleque volta com a Mari pra garantir o ingresso dele… – Complementou Kitz, se referindo à irmã de Martin.

– Fica tranquilo, galera. Nosso “Revéi” tá garantido. Joguei a letra ontem, e ela disse que eu posso levar até três cabeças no carro dela. – Informou Zoila.

– Opa, garante um aqui! – Gritou Roserite, se adiantando.

– Tamo junto, moleque! Aperta outro aí pra gente comemorar! – Exclamou Kitz, esfregando as palmas das mãos.

Mas ninguém ali tinha outro. Nem Tales “Filho”, que sempre tinha. Depois que revistaram os bolsos e confirmaram a seca, Roserite veio com uma história bizarra:

– Um cara lá no colégio disse que se a gente amassar uns gongolos num pote de vidro, e der uma cafungada forte, bate uma onda mais forte que maconha.

Segundos depois, os quatro malucos já estavam tentando caçar os bichinhos no gramado em frente ao posto de gasolina. Martin estranhou a movimentação:

– O que vocês estão fazendo, porra?

Kitz, Roserite e Filho não tiveram sucesso, mas Zoila tanto fuçou que encontrou um exemplar do artrópode também conhecido como “piolho-de-cobra”. Mais uns minutos, todos já tinham desistido de achar outro.

– Amassar só um não vai dar em nada. – Avaliou Ricardo “Roserite”.

– Então vamos apertar a gonga. – Sugeriu Kitz, já tirando do bolso um pedaço de papel de seda.

– Cara, vocês são malucos… – Disse Martin, espantado com a sugestão.

Zoila nem piscou. Teve uma certa dificuldade pra esticar o gongolo, que se enrolava para se proteger dos predadores, mas terminou conseguindo apertá-lo na seda. Acendeu o isqueiro e lutou para queimar o bicho ainda vivo, que se contorcia dentro do cigarro improvisado.

– Essa porra não carbura… – Reclamou Zoila, passando o “baseado” à frente.

Kitz não se deu por satisfeito, e insistiu com a chama alta até que o gongolo finalmente pegou fogo. Com uma expressão de satisfação, após dois tapas e um aperto no nariz para fazer pressão, ele passou o cigarro surreal para Roserite. Nojo. O gosto era horrível. Ele então ofereceu a ponta para Martin, que dispensou com uma careta. Definitivamente, seus amigos tinham perdido a linha. Fumar um bicho vivo?

Nem fodendo.

Continua: II. Sem Nome

Marcial Renato

Marcial Renato

Marido da Karin, a mulher mais bonita que já conheci na vida, pai da Ravena (super poderosa), do Henzo (a pronúncia é "Renzo", como o lutador) e da Laura (de olhos verdes). Filho da Alzira, a mulher mais forte do mundo, e do Paulo Roberto, o cara mais maneiro de todos os tempos. Já trabalhei como produtor de TV, Cinema e Internet, fui professor de Comunicação Social e hoje sou servidor de carreira da Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Tenho um mestrado em Literatura e graduação em Publicidade e Propaganda, ambos na UFRJ. Em 2012, escrevi, produzi e dirigi o longa-metragem "Dia de Preto", com Daniel Mattos e Marcos Felipe Delfino, premiado em diversos festivais no Brasil e no mundo. Também sou autor dos livros "Rituais de Casamento", de 2015, junto com a Karin, e "Asgaehart: as invasões bárbaras", lançado em 2018. Duas vezes por ano jogo na lateral direita do time dos nascidos na década de 70 do Vale do Rio Grande (7X). Também gosto de pegar onda no verão, e nas horas vagas escrevo aqui no site da Maxie.

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