O Fogo da Vida
Depois da meia-noite e da euforia fiquei um longo tempo olhando a fogueira que havíamos acendido, hipnotizado pelo movimento das chamas que consumiam lentamente a lenha. Pensei na semelhança delas, as chamas, com o cascatear da cachoeira que me hipnotizava horas antes, à tarde, na beira do rio. A cascata e as chamas parecem insinuar uma forma mais ou menos estável, como uma figura fantasmagórica que dança diante dos nossos olhos, crepitando entre os galhos ou murmurando entre as pedras alguma mensagem além do alcance da memória ou da razão.
Na verdade as chamas e as cascatas são formadas pelo fluxo (de água ou de gás incandescente) tão rápido que nossos olhos não são capazes de acompanhar. A cada fração de segundo o corpo da chama ou o corpo da cachoeira são compostos de um conjunto totalmente novo de material, de forma que a ideia de que há ali um ente é completamente equivocada, pelo menos do ponto de vista da substância. Pelo contrário, não há permanência alguma ali e é exatamente isso que dá às chamas ou a cachoeira a sensação de vida, de que há algo vivo em seu interior. Isso, o fato de que nunca há algo exatamente ali, faz com que sintamos precisamente o oposto, que há sim, ali mais do que em qualquer outro lugar, algo ou alguém a ser descoberto. Já quando olhamos a pedra ou a lenha que é consumida, estamos observando algo que definitivamente está ali, mas a sensação é oposta, a de que aquilo não é, não vive, não significa nem dura, inerte e desinteressante, incapaz de atrair o ponteiro de nossa bússola cognitiva. Somos rápidos demais para a pedra e lentos demais para a chama.
Será que somos a fogueira que as pedras olham? Somos lenha ou pedra aos olhos do fogo? Sob meu próprio olhar o corpo é lenha e é pedra mas eu mesmo sou chama, cachoeira… fluxo. Tão inebriante e veloz, tão impossível de deter, reter ou sequer captar que constitui-se enfim como ente, como ser, como vida. Nunca o mesmo, portanto queimando em permanência como apenas o ser pode.
A vida é a chama que consome a matéria, é a água que flui entre as pedras do cosmo. Assim como o fogo precisa alastrar-se, a vida precisa fluir constantemente de um corpo a outro, do macho à fêmea, da mãe ao filho, da presa ao predador, indetida, atualizando-se incessantemente.
Uma vez que a vida tenha consumido a lenha de um corpo completamente, ela se extinguirá naquele corpo que será queimado por outras vidas sob a terra. Nada pode reverter isso, pois a vida não é o movimento de uma máquina, que pode ser retomado do repouso. A centelha original perde-se no horizonte do tempo enquanto resta ao motor da existência abrir caminho através de si.
A vida precisa canalizar-se constantemente, tomando novos rumos. E assim se passa conosco, indivíduos humanos. Somos pequenas fogueiras, alastrando o incêndio da vida pelo universo, chamas dentro de chamas. Células, indivíduos, espécies, biomas, planetas. Dos movimentos tectônicos ao colapso de estrelas numa reação em cadeia que dá caminho à avalanche da criação.