Por que leio digital?

Por que leio digital?

Até alguns anos atrás, eu não poderia dizer que um de meus hobbies preferidos era o da leitura. Creio que não seria um exagero afirmar que era possível contar nos dedos das mãos, possivelmente de uma só, a quantidade de livros que eu lia por ano. O motivo não era exatamente que eu não gostasse de ler. Ao contrário, desde a infância eu lembro de buscar livros que não fossem os obrigatórios pelo currículo escolar. Tubarão, por exemplo, foi um deles. A Divina Comédia foi outro, apesar de eu ter abandonado a leitura ao fim do Inferno. Lembro também de Indiana Jonas e o Templo da Perdição, esse aqui totalmente motivado pela impossibilidade de eu ver o filme nos cinemas devido à pouca idade.

Já na vida adulta, o hábito esporádico continuou, assim como a lembrança de títulos bem proveitosos como Cem Anos de Solidão, Quando Nietzsche Chorou, Reparação, O Mundo de Sofia e Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos.

Nessa época, também passei a ter interesse por livros não ficção, principalmente os voltados para a área audiovisual, como A Linguagem Secreta do Cinema e A Imagem.

Mas a realidade é que eu simplesmente não tinha uma “fila” de livros para ler. Ocasionalmente, pelos mais diversos motivos, um despertava interesse e ganhava destaque na utilização de meu tempo livre que, até então, era quase que exclusivamente ocupado por um contrabaixo, um violão ou uma guitarra em punho.

A virada de chave aconteceu totalmente ao acaso em 2014. Mas para entender o que aconteceu nesse ano, é preciso retornar a 2013, pois foi quando eu decidi “ver qual é” a de uma série que havia se transformado em hype logo após sua estreia dois anos antes. Estamos falando nada mais nada menos que Game of Thrones. E logo no primeiro episódio a série me cativou. Assisti a primeira temporada. Assisti a segunda temporada. Assisti a terceira temporada. E agora eu teria que esperar o ano seguinte para assistir outra temporada. Mas, espera aí: a série da TV é baseada em uma de livros, certo? Então, não vamos esperar nada, vamos é ler os livros. A propósito, nunca entendi intitularem a série com o nome do primeiro livro. A Song of Ice and Fire é muito mais imponente e poético do que Game of Thrones. E, na tradução para o português, fica ainda mais belo: Crônicas de Gelo e Fogo.

Feita a decisão de ler os livros da coleção, entra em cena o segundo acaso que me levou ao Kindle. Eu estava querendo aprimorar meu inglês que já estava extremamente enferrujado desde o longínquo ano de 1989 quando morei em Londres e de minha formatura na Cultura Inglesa uns 4 ou 5 anos depois. Então, resolvi encarar os calhamaços em inglês. Mas eu estava reticente em comprar o livro na língua original por medo de ser difícil de entender. Então, pensei: será que consigo uma versão gratuita da internet para experimentar? Na época, eu nem conhecia a possibilidade de baixar uma amostra grátis de qualquer livro digital na Amazon e acabei baixando uma versão em PDF mesmo.

Mas o PDF logo se mostrou inconveniente. A única forma de o ler de forma confortável era no computador, pois no celular ou as letras ficavam muito pequeninas ou tinha que ficar deslocando a tela de um lado para o outro. Um saco.

E foi então que eu conheci o Kindle. Não o aparelhou propriamente dito, mas o aplicativo para Android. Eu não recordo se eu o descobri por acaso e resolvi experimentar ou se alguém indicou, mas foi nesse momento que uma nova relação começou entre mim e os livros. Estava no metrô indo ao trabalho? Pegava o celular para ler. Retornando? Pegava o celular para ler. Fila de supermercado? Mesma coisa. Tinha uns 5 minutinhos livres antes do próximo compromisso? Sacava o celular e retornava a leitura. E, quando fui perceber, já estava lendo um livro atrás do outro, agora sim existindo uma “fila” de leitura dentro do aplicativo.

Embora a leitura digital tenha começado por uma cópia gratuita (provavelmente pirata pois que detentor de direitos em sã consciência iria disponibilizar As Crônicas de Gelo e Fogo gratuitamente…?), eu logo comecei a pagar de bom grado pela facilidade de ter um novo livro instantaneamente após a decisão de compra. O primeiro livro digital que comprei data de 25 de novembro de 2014 e, desde então, já foram 235. Não quero nem pensar em quanto custaram.

Aliás, não há muito tempo eu deparei-me com um artigo que comparava o livro digital com o físico para verificar se seria de fato mais barato ler digital. Achei a proposta tola. Primeiro porque me parece simplesmente impossível criar um cenário no qual a comparação não sofra distorções. O que entraria na conta? O valor do aparelho Kindle? Qual versão dele? Qual a vida útil do aparelho? O frete do livro físico entraria na conta? E a gasolina para ir até uma livraria? Estacionamento? Enfim, existem uma série de fatores que poderiam influenciar a depender do cotidiano do leitor, seja de livro físico ou digital. E o segundo motivo que achei a comparação tola é que me parece muito pouco provável que migrar para a leitura digital ou permanecer na física tenha como motivação o ponto de vista financeiro.

Eu migrei para o digital pela facilidade que me trouxe. O livro passou a ir comigo para qualquer lugar. Passou a ser possível comprar o livro desejado onde quer que eu estivesse (bastando uma conexão com a internet). Passei a poder experimentar o início do livro como amostra grátis antes da decisão de compra. Deixou de existir o conceito de livro esgotado ou em falta. Nas mudanças de endereço, deixei de contribuir para o aumento da quantidade das caixas pesadíssimas de transportar… e assim cheguei na imagem que ilustra essa postagem, completando hoje, 22/05/2022, 891 dias consecutivos de leitura – cerca de dois anos e meio – e 200 semanas também consecutivas: quase 4 anos.

Mas eu também entendo que sou exceção, principalmente no mercado brasileiro. Ainda que a venda de livros digitais tenha crescido com a pandemia (83% de crescimento em 2020 em comparação com 2019, de acordo com pesquisa feita pela Nielsen), a preferência pelos livros físicos ainda detém grande vantagem. Vejo isso em minha própria casa. Minhas duas filhas adolescentes de 15 e 17 anos, portanto crescidas em mundo completamente digitalizado (nunca viram um vinil), sequer pensam na possibilidade de parar de ler livros físicos, pois não se satisfazem apenas com a experiência da leitura. O ato de abrir o livro novo e sentir o seu cheirinho é um momento mágico para elas. Assim como também amam olhar as prateleiras lotadas de livros.

E ainda falam em choque de gerações.

Marcos Felipe Delfino

Marcos Felipe Delfino

Nascido em 1975, Marcos Felipe, também conhecido como Marquinho, ou Marquito, ou Kinets, já tentou ser músico, fotógrafo e cineasta entre outras frustrações. Hoje é servidor público.

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