Público em Salas de Cinema e Mecanismos de Financiamento
Está disponível no OCA, Observatório do Cinema e do Audiovisual brasileiro, uma tabela com a “Listagem dos Filmes Brasileiros Lançados em Salas de Exibição com Valores Captados através de Mecanismos de Incentivo, de 1995 a 2020”.
Se é verdade que os números brutos de público/bilheteria e valores captados para a produção de obras audiovisuais não são capazes de oferecer um diagnóstico preciso do desempenho na distribuição em salas de cinema (sujeito a variáveis como o valor de investimento em comercialização/divulgação, quantidade e localização das salas que exibiram o filme etc.), também é verdade que ignorá-los não é uma opção satisfatória.
Pois a planilha referida pode oferecer algumas pistas para a avaliação da política pública de fomento à produção de filmes de longa-metragem para cinema, nos últimos 25 anos. Como já avaliei aqui, aqui e aqui, trata-se de um mercado complexo, com muitos desafios para o produtor independente brasileiro, principal agente fomentado, e que tem se sustentado no Brasil através de recursos de fomento indireto (leis de incentivo, que delegam a terceiros a seleção das obras fomentadas) e fomento direto (especialmente o FSA, que de forma geral seleciona projetos através de editais).
De acordo com a tabela referida, 1908 filmes brasileiros foram lançados em salas de cinema no período destacado (1995 a 2019 – os 59 filmes lançados em 2020, ano atípico por conta da pandemia, foram excluídos do levantamento), que compreende o que se convencionou chamar de “Retomada” (ciclo proporcionado pela criação das primeiras leis de incentivo após a crise ocasionada pela extinção da Embrafilme pelo governo Collor) e o que chamarei aqui de “Era Ancine” (iniciada após a criação da Agência, em 2001). Todos esses filmes, somados, levaram 356,4 milhões de espectadores aos cinemas, o que resulta em uma média de cerca de 186 mil espectadores por obra.
O primeiro dado importante que pode ser extraído da planilha, no entanto, diz respeito ao resultado dos filmes, em relação ao tipo de financiamento: de forma geral, as obras que utilizaram recursos públicos tiveram um resultado melhor do que as obras produzidas exclusivamente com recursos privados. Daquele total, 1373 obras lançadas foram produzidas por meio dos mecanismos de fomento direto e/ou indireto, e levaram mais de 305 milhões de espectadores aos cinemas. Uma média de mais de 222 mil bilhetes por obra, superior à média total encontrada.
Já os 535 filmes que não utilizam recursos públicos para sua produção no mesmo período (dentre eles, DIA DE PRETO, escrito e dirigido por mim, Daniel Mattos e Marcos Felipe Delfino, cuja produção foi iniciada em 2005, antes que nos tornássemos servidores da Agência, e lançado apenas em 2012) levaram apenas pouco mais de 50 milhões de espectadores aos cinemas. Uma média de cerca de 94 mil por obra. Deve ser ressaltado aqui, no entanto, que cerca de 30 milhões de bilhetes desse grupo de filmes foram alcançados por apenas 3 obras (“Nada a Perder”, “Nada a Perder 2” e “Os 10 Mandamentos”), da Record. E pouco mais de 6 milhões de bilhetes foram vendidos para outros 3 filmes da Globo (“Os Normais 2”, “O Auto da Compadecida” e “A Grande Família”). Obras não independentes, portanto. Assim, restam cerca de 14 milhões de bilhetes vendidos para 529 filmes. Uma média de pouco mais 25 mil bilhetes para a grande maioria das obras que não foram produzidas com recursos públicos.
Trata-se de uma diferença significativa, que por si só já é capaz de destacar a importância do fomento público à produção de obras cinematográficas nacionais para o resultado de mercado. Em outras palavras: a falta de incentivo leva inevitavelmente ao domínio completo das produções estrangeiras (blockbusters americanos, em sua maioria) e das (poucas) obras não independentes produzidas por empresas radiodifusoras brasileiras, como a Record e a Globo.
Aprofundando a análise, do universo de obras produzidas com recursos públicos, algumas diferenças também são marcantes. 605 filmes brasileiros utilizaram recursos de fomento direto. Na tabela, tais recursos estão registrados nas colunas de “FSA” e “Outras Fontes” (que durante algum tempo também foi usada para registrar no sistema da ANCINE as captações do FSA). Esses filmes captaram cerca de R$ 581 milhões de fomento direto e fizeram pouco mais de 111 milhões de espectadores, alcançando uma média de pouco mais de 184 mil bilhetes por obra (abaixo da média total). Assim, num cálculo raso, foi necessário cerca de R$ 5,2 captados através de fomento direto para vender 1 bilhete (preço média do ingresso no Brasil: R$ 17,41, de acordo com os últimos dados do OCA, de 2021).
Quando comparamos esses números ao resultado dos mecanismos de fomento indireto, a diferença também é marcante, especialmente em relação aos mecanismos de coprodução de obras independentes com empresas do setor audiovisual (Art. 3º da Lei do Audiovisual: coprodução com empresas distribuidoras de cinema; Art. 3A da Lei do Audiovisual: coprodução com empresas radiodifusoras; e Art. 39-X da MP 2.228-1/01: coprodução com programadoras de TV Paga).
Em relação ao Art. 3º, foram lançados 389 filmes, que captaram cerca de R$ 512 milhões com empresas distribuidoras e fizeram quase 228 milhões de espectadores. Uma média de mais 585 mil espectadores por obra (mais de 3 vezes maior que a média geral). E foi necessário apenas R$ 2,25 captados através do mecanismo para a venda de 1 bilhete. Menos da metade do que foi necessário através do fomento direto.
Resultado bem parecido foi alcançado pelas obras coproduzidas com empresas radiodifusoras. 250 filmes lançados captaram R$ 297,5 milhões através do Art. 3A e alcançaram pouco mais de 121 milhões de espectadores. Média de 484 mil espectadores por obra. E apenas R$ 2,46 captados resultou na venda de 1 bilhete.
As coproduções através do Art. 39-X tiveram uma conversão ainda melhor, embora apenas 39 filmes lançados em salas de cinema tenham contado com o mecanismo (o que pode ser explicado: as coproduções com programadoras de TV Paga quase sempre são destinadas inicialmente ao segmento de mercado da empresa parceira). Foram pouco mais de R$ 13 milhões captados, que resultaram em 13,8 milhões de espectadores. Média de pouco mais 353 mil espectadores por obra. E o destaque: apenas R$ 1 captado através do mecanismo gerou a venda de 1 bilhete.
Quando se trata dos mecanismos de investimento (Art. 1º da Lei do Audiovisual e FUNCINE), os resultados são menos expressivos, mas ainda assim melhores do que os do fomento direto. Pelo Art. 1º, foram mais de R$ 690 milhões captados para o lançamento de 686 filmes, que fizeram cerca de 200 milhões de espectadores. Média: pouco mais de 292 mil por obra. Conversão: R$ 3,44 captado para cada bilhete vendido. Já os R$ 49 milhões de FUNCINE foram utilizados por apenas 43 filmes, que alcançaram 23 milhões de espectadores. Uma média de cerca de 534 mil bilhetes por obra, com conversão de 1 bilhete para cada R$ 2,13 captados.
No fomento indireto, os mecanismos de patrocínio (Arts. 18 e 26 da Lei Rouanet e Art. 1A da Lei do Audiovisual) obtiveram os piores resultados. Destaca-se, no entanto, que só há registro de captações para filmes de longa-metragem através da Lei Rouanet até o ano de 2013, uma vez que estes mecanismos foram gradativamente sendo substituídos pelo Art. 1A da Lei do Audiovisual, criado em 2006.
Pelo Art. 1A, 605 filmes brasileiros lançados em salas de cinema captaram cerca de R$ 450 milhões, fazendo 159 milhões de espectadores. Média de quase 263 mil por obra. Conversão: R$ 2,83 captados para cada bilhete. O Art. 18 da Rouanet foi utilizado por 280 filmes, que captaram R$ 175,5 milhões e venderam 68,5 milhões de bilhetes. Média: pouco mais de 244 mil espectadores. Conversão: R$ 2,56 captados para cada bilhete. Já o Art. 26 apresenta números ainda piores que os do fomento direto: R$ 28 milhões captados para 64 filmes lançados, que alcançaram apenas 2,5 milhões de espectadores. Média de pouco mais de 39 mil espectadores por obra, sendo necessário mais de R$ 11 captados através do mecanismo para a venda de um único bilhete.
Tais resultados não são surpreendentes. Afinal, trata-se de um mercado em que o acesso aos canais de divulgação e distribuição é condição necessária para o sucesso. Assim, os melhores resultados dos mecanismos de coprodução certamente refletem a influência e investimento das empresas parceiras nos esforços de comercialização. Dentre os mecanismos de investimento e patrocínio, os números do FUNCINE também parecem indicar que a atividade de seleção de projetos é de suma importância para os resultados.
Os resultados gerais do fomento direto, no entanto, devem ser relativizados, uma vez que não é possível segregar os recursos do FSA por cada linha de investimento, com base nos dados da tabela. De forma geral, no entanto, os números também parecem indicar problemas relacionados a (falta de) recursos e acesso aos canais de distribuição, assim como possíveis dificuldades na metodologia para seleção dos projetos.
Obviamente, trata-se de uma análise preliminar dos dados disponíveis, que carece de aprofundamentos necessários para possibilitar as ações cabíveis para revisão e aperfeiçoamento dos mecanismos. No entanto, são informações relevantes para introduzir a discussão a partir de fatos, uma vez que um dos objetivos da política pública para o audiovisual deve ser encontrar os meios de maximizar os efeitos dos recursos investidos na atividade de fomento, seja através do retorno econômico para os agentes do mercado, seja através do estímulo à circulação das obras brasileiras, alcançando o máximo de espectadores.