Queimando Café (parte 3): Conteúdo por Assinatura e o Paradoxo da Escolha.
Em dois outros textos, que você pode ler aqui no Blog, tentei desdobrar a reflexão sobre as consequências concretas de uma característica inescapável da indústria cultural: o excesso. Nascido na prodigalidade dos indivíduos criativos e multiplicado pela prosperidade de uma civilização cujo valor central é a maximização material, o excesso de conteúdo cultural criou uma exuberância que, somada ao caráter altamente competitivo de nossa estrutura social, resultou num afunilamento agudo dos incentivos econômicos na indústria criativa.
Esse cenário é, possivelmente, o fator primordial determinante que se apresenta ao fundo de qualquer discussão contemporânea sobre as artes, a indústria do entretenimento e da informação, ou a cultura em um sentido mais amplo.
O desenlace que nos interessa mais aqui é que o ecossistema da indústria cultural apresenta hoje níveis inimagináveis de assimetria entre seus agentes e participantes.
Como chegamos a esse ponto?
O processo de aumento da diversidade de oferta de produtos é inerente à história das sociedades ditas capitalistas (o termo é tão contaminado que pede um “ditas” antes). O incrível sucesso desse sistema social, dedicado ao progresso material e à abundância, transformou o mundo rápido demais para que possamos perceber o quanto nossas vidas são radicalmente distintas daquelas dos nossos antepassados. A duração da vida humana resulta em no máximo três gerações convivendo ao mesmo tempo. Nossa natural miopia histórica não nos deixa reconhecer o nível de exuberância em que estamos. A miopia é tal que chegamos a crer, em alguns momentos, que vivemos na escassez. Eduardo Giannetti fala de forma precisa sobre isso em seu livro “Trópicos Utópicos”. O sujeito de classe média de hoje vive melhor do que um Rei vivia há dois ou três séculos, o que não o impede de se achar pobre e fracassado.
O fruto de nossa civilização é um estado de excesso caótico de opções. Temos a tendência em celebrar essa profusão de alternativas como sinônimo de bem estar e liberdade, muito embora estejam diante de nós múltiplos sinais de mal-estar e sujeição. O psicólogo americano Barry Schwartz identificou e estudou esse problema, batizando-o de “Paradoxo da Escolha“, e descrevendo claramente o padrão de vantagens decrescentes resultante do contínuo aumento das opções em todos os aspectos da vida, o que hoje inclui até mesmo identidade biológica. Os indivíduos da atualidade têm tantas opções em relação a tudo que terminam prisioneiros em um purgatório de ansiedade, angústia e, por fim, arrependimento a respeito das escolhas que fizeram.
Nada disso é novo. Quando eu ainda era um estudante universitário, na segunda metade dos anos 90, havia um intenso debate sobre os impactos que a internet traria ao campo social e cultural. Um deles era exatamente sobre a possibilidade de qualquer usuário ter a seu alcance todo o conteúdo do mundo, algo como todos os livros, filmes e músicas no seu bolso, para usar o exemplo que nos interessa aqui.
Já naquela época havia quem defendesse que, diante de tantas possibilidades, o papel do curador ou programador não apenas seria preservado com as novas tecnologias, como se tornaria cada vez mais necessário. Com o excesso de conteúdo, as pessoas buscariam fontes confiáveis para filtrar o manancial de conteúdo e selecionar o que melhor lhes service. Isso de fato aconteceu, mas de uma forma que ninguém na época esperava: o curador ou programador de hoje é um algoritmo impessoal, rodando em uma fazenda de servidores anônima em alguma planície congelada. O papel de ascendência intelectual que estava pressuposto nessa projeção não se concretizou. Pelo contrário, as instituições de liderança intelectual gozam hoje de um desprestígio jamais experimentado anteriormente. O livro “The Death of Expertise”, de Tom Nichols, é um bom mergulho nesse ponto da questão. Para nós, aqui, o importante é reconhecer que as pessoas não confiam na “mídia tradicional”, ou seja, no curador e programador humano cujas decisões obedecem ao sistema social tradicional que cria esses gatekeepers. Por outro lado, as pessoas confiam cegamente nos algoritmos invisíveis que filtram o excesso de conteúdo a partir de suas reações mais instintivas e imediatas. Também não vou me alongar sobre esse que, à essa altura, já é um debate quente nos botequins, pontos de táxi e documentários sensacionalistas. Só quero chamar atenção para o fato de que o curador perdeu, efetivamente, muito do seu antigo poder e autoridade.
Por que as pessoas não confiam mais no curador, no especialista ou no intelectual? Se seguirmos a lógica que vimos explorando, concluiremos que é porque as demais opções não param de bater-lhes à porta, alardeando que a escolha feita é a escolha errada. A polarização infantil e primitiva que hoje vemos em torno de qualquer assunto reflete exatamente isso. Se você confia em um “canal” de curadoria, imediatamente outro canal aparece como nêmesis deste, condenando essa escolha do ponto de vista lógico, retórico, ético ou estético. Para ater-se à sua opção, você precisa literalmente entrincheirar-se e resistir ao ataque de todas as outras. Hoje as pessoas são tão pressionadas, julgadas e questionadas no processo de escolha que elas estão ficando menos interessadas no conteúdo daquilo que é escolhido e cada vez mais obcecadas por sistemas de hedge para suas opções. A reversibilidade da decisão tornou-se uma commodity das mais valiosas. É aí que entram as novas gigantes de conteúdo.
O mundo do conteúdo cultural é talvez aquele que foi atingido de forma mais aguda por essa transformação no cenário do comportamento. A indústria audiovisual, editorial e musical foram rapidamente conformadas em torno de sistemas como Netflix, Spotify e Amazon. Por que? Porque são sistemas de hedge para escolhas infinitas.
Quando você assina Netflix, não está comprando conteúdo. Claro que não. Comprar conteúdo é ruim porque, como vimos nos textos anteriores, qualquer preço é caro e, como vimos ao longo deste, qualquer escolha gera custo de oportunidade e arrependimento ante todas as que deixaram de ser escolhidas. Pra começo de conversa você não faz a menor ideia do que quer. Vender conteúdo no varejo é um mau negócio e, se você tem dúvida, converse com o dono da livraria, o produtor de cinema ou o compositor de pagode do seu bairro. A Netflix, porém, não vende conteúdo, mas um catálogo hiperbólico por um preço fixo desprezível e, nesse combo, um algoritmo que estimula você a assistir algum conteúdo, não importa qual, contanto que você continue voltando. Portanto, aquilo que a Netflix nos vende em realidade é um mecanismo para manter nossas opções em aberto indefinidamente. Trata-se de um ansiolítico virtual para o mal do século.
Da mesma forma, Spotify te livra daquela angústia do final do século XX que era decidir que disco comprar. O serviço vende, pelo preço de um frango assado, o direito de ouvir qualquer coisa ou coisa nenhuma por 30 dias. Com isso (e a alfaiataria algorítmica de playlists), Spotify te livra definitivamente da sensação de ter que escolher o que ouvir.
Na primeira vez em que vi um Kindle na vida, um amigo balançava aquele pequeno tablet dizendo, com um sorriso. Tenho 350 livros aqui! A alegria dele era essa: Não ter jamais a sensação de ter levado o livro errado na viagem. Cada vez menos capazes de escolher, não compramos mais conteúdo; compramos “opcionalidades”. Não queremos um filme. Queremos o direito de não escolher agora. Neste fenômeno talvez esteja a raiz da decadência da “situação cinema” que o Marcial Renato abordou em ainda outro texto aqui no blog. Ir ao cinema é uma decisão irreversível em muitos sentidos, talvez demais para os frágeis indivíduos dos anos 20 deste século.
É por essa razão que os serviços de agregação de conteúdo por assinatura dominam o mundo nesse momento. O novo ambiente consolida aquele processo histórico de construção do império do agregador, iniciado com o studio system, as gravadoras e similares, o que inclui a extrema deflação do valor do criador e da criação nesse sistema. O limite dessa premissa se faz presente nas redes sociais, onde o papel de criação de conteúdo foi fragmentado ao limite do paroxismo, em que “todos são produtores e consumidores” e no qual tanto conteúdo quanto atenção são dados de graça. Com isso, toda a produção intelectual e artística cai na vala comum da demagogia e na ideologia vazia do “todo mundo é criativo”. Esse corolário naturalmente conduz ao seu equivalente: a ideia de que ninguém é original, de que tudo é remix. Voilà! O mundo está pronto para ser dominado por hacks no lugar de autores, teoristas da conspiração no lugar de cientistas políticos e terraplanistas em lugar de cientistas.
Não sou adepto do catastrofismo, muito menos das teorias conspiratórias. Acho que se chegamos a esse ponto é por algo ao menos em parte intrínseco à natureza da criação e do consumo cultural. Que fundamentos seriam esses?
Primeiro, temos a “economia do dom” que caracteriza a dinâmica cultural e foi tema do texto anterior. Criadores querem se expressar, seja como for, e o que mais desejam é que os demais usufruam de sua criação. Isso sempre foi assim. A produção artístico-cultural é generosa por definição e tem a prodigalidade em seu DNA. Isso sempre exigiu um “colapso de onda” para adaptar-se à lógica “capitalista” da escassez, da maximização da utilidade e do egoísmo naturalizado. Como não sou anti-capitalista, devo esclarecer: é assim porque o que chamamos de capitalismo nasceu nos processos sociais que nos permitiram lidar com toda sorte de escassez e alcançar a prosperidade em que vivemos. A ordem social que chamamos de capitalismo não está adaptada, ao menos não ainda, à abundância. Os sinais disso já estão claros em muitas dimensões, desde o cenário cada vez mais paradoxal do sistema monetário até a dificuldade em dar valor econômico aos recursos naturais preservados.
O mesmo se passa com a economia criativa (no senso mais profundo do termo, não esse jargão surrado de conferência de negócios). O trabalho criativo é cada vez mais abundante e o sistema segue respondendo a isso com a depreciação do valor econômico da criação, exigindo ganhos de escala desumanos para validar essa atividade. Isso é paradoxal. O progresso desse sistema social nos levou a uma necessidade cada vez menor de trabalho não criativo. As pessoas têm cada vez mais recursos materiais e de tempo. Isso leva multidões às atividades de consumo e, consequentemente, de criação de conteúdos artísticos e culturais. É uma bola de neve. Novamente, o que estou descrevendo aqui não é heterodoxo e “O Ócio Criativo”, de Domenico De Masi, é uma fonte abundante de evidências nesse sentido.
Há muitos aspectos da nossa ordem social que parecem depender da escassez como forma de incentivo econômico a ponto de situações em que a situação de exiguidade se vê ameaçada darem origem a mecanismos que recriam uma escassez artificial apenas como forma de sustentação do mecanismo de preços. Serviços como o Uber demonstraram essa dinâmica no sistema de transporte público e muitos outros exemplos podem ser enumerados. Quando se trata da crescente segmentação da mídia, apesar dos notáveis avanços tecnológicos que vêm ocorrendo, persiste a prevalência de um traço demasiado humano: o cérebro é capaz de gerenciar um número limitado de problemas simultaneamente e isso parece significar que editores, diretores de programação e gestores de conteúdo devem seguir concentrando recursos e investimentos em um número limitado de criadores e extensões de marca a despeito da capacidade ilimitada que os sistemas que operam têm de monetizar uma miríade de criações diversas. Assim como os usuários dos serviços de conteúdo, seus operadores precisam de hedges contra as consequências de suas próprias escolhas e, assim como os artistas, eles são alvo de uma competição implacável em que resta pouco espaço à imaginação.
Continua em “Queimando Café (Parte 4) – Complexidade x Escalabilidade: A Próxima Convergência“.