Quimera – Escalabilidade e criatividade na indústria de conteúdo.
Todas as empresas grandes se parecem. Empresas pequenas são pequenas cada uma à sua maneira. Vivemos uma era de culto à escalabilidade dos negócios. Esse princípio já havia se tornado dominante com a primeira revolução industrial. No século XXI, a automação do trabalho intelectual e dos processos decisórios, somada à brutal eliminação de custos pelo caráter imaterial da economia digital, transformaram a ideia da escalabilidade em panaceia. O primeiro slide na apresentação de toda startup dirá como a ideia é legal. O segundo dirá que é escalável e, por isso, dará muito dinheiro. Escalabilidade é o caminho para que uma empresa pequena se torne uma empresa grande. No entanto, é um engano imaginar que empresa grande é sinônimo de empresa boa ou que empresa pequena é uma empresa que “não conseguiu crescer”. Há empresas pequenas que são muito lucrativas e empresas grandes que só produzem prejuízos. Há empresas pequenas que produzem valor para seus clientes, colaboradores e a comunidade, enquanto há empresas grandes que destroem valor. Por fim, há empresas pequenas e felizes e há empresas grandes e tristes.
Um dos maiores erros que um empresário pode cometer é desenvolver obsessão por escalabilidade, especialmente quando isso acontece precocemente. Há muito conteúdo de autoajuda e empreendedorismo por aí que induz empreendedores ao uso da ideia abstrata de escalabilidade como uma marreta decisória, martelando todos os pregos e parafusos de sua empresa nascente e jogando fora qualquer coisa que não atenda a esse imperativo. O nome moderno dessa Quimera é “Startup”, e as praias do mundo estão repletas de cadáveres delas. Startup é uma empresa que não sabe ser pequena. Nem existe ainda, mas tem planos de dominação global. Como um adolescente que faz planos para o sucesso, mas nem sequer paga as próprias contas. Ganhos de escala são fundamentais para a vida de grandes empresas e para o crescimento de médias empresas, mas pouco se discute sobre o preço pago para tornar isso possível. Para crescer e ganhar escala, a empresa trilha um caminho em que a criatividade tem um papel cada vez menor e, consequentemente, vai ficando parecida com todas as outras. Empresas grandes vão se tornando cada vez mais competitivas, porém menos inovadoras, e têm dificuldade para manter seu diferencial de mercado. A única coisa que mantém uma empresa pouco criativa no mercado são as economias de escala. Da mesma forma, a única coisa que mantém uma empresa de pequena escala no mercado é sua criatividade pois daí emerge seu diferencial. Uma empresa pequena sem criatividade ou diferencial é uma empresa morta.
Como isso se relaciona com a indústria criativa? Um dos grandes dilemas desse segmento de atividades é equacionar o problema da escalabilidade. Há farta literatura, repleta de contorcionismo intelectual para adaptar a lógica da escala industrial à atividade criativa. O artifício lança uma nuvem de fumaça sobre um fato subjacente e que precisa ser encarado: o ato criativo simplesmente não é escalável.
Escalabilidade é a habilidade de reproduzir um mesmo resultado por custo cada vez menor. Está na base do conceito de indústria que, por sua vez, evoluiu até tornar-se sinônimo de uma aplicação do princípio da escalabilidade a uma determinada categoria de produtos ou serviços. Indústria é sinônimo de produção em escala. Dito isso, podemos também afirmar que indústria é tudo que acontece quando termina a atividade criativa e seu objetivo é reproduzir o resultado dessa atividade. É uma questão de lógica. Se produção em escala industrial é um processo de repetição focado em reduzir custos, este não pode ser considerado como um processo de criação. Ele pode ser modular, customizável, permeado por aperfeiçoamentos constantes, mas não é criativo. Os atos criativos são a idealização dos módulos, design dos elementos customizáveis ou o aperfeiçoamento, mas não a produção em escala. Não se pode criar em série, por meio da repetição industrial. Trata-se de uma escolha ontológica: você está criando ou está reproduzindo o que foi criado. Claro que qualquer atividade tem alguma dose das duas coisas. São princípios que interagem, mas não se misturam nem se confundem.
O que chamamos de indústria criativa é aquela em que atividade de criação é preponderante sobre a atividade de reprodução em escala industrial. Tomemos como exemplo a indústria audiovisual. Esta é considerada uma “indústria de protótipos” porque sua atividade principal não é o processo reprodutivo, mas o processo de criação de conteúdo. Cada filme é um objeto criativo novo, desenvolvido como um protótipo ou produto único. Terminado um produto, o processo de pesquisa e desenvolvimento de outro produto começa imediatamente. A reprodução propriamente dita do conteúdo para ser oferecido a múltiplos consumidores é, por outro lado, infinitamente escalável. Isso faz com que o custo de oferta tenda a zero, especialmente depois da digitalização. Essa lição foi duramente aprendida durante a revolução digital por meio de crises subsequentes na indústria editorial, fonográfica e mais recentemente no setor audiovisual.
A indústria criativa é, portanto, uma Quimera. Tal qual a criatura mitológica de Anatólia, é objeto de diferentes versões sobre sua forma híbrida, sua origem e descendência. Persiste, no entanto, seu caráter paradoxal. Um lado dotado de radical escalabilidade e outro em que qualquer escalabilidade se revela impossível por definição. Tal dicotomia dá forma ao setor, com contrastes vertiginosos entre seus elos produtivos. Num polo temos empresas gigantescas, agregadores e distribuidores de conteúdo, cuja atividade central é criar meios para multiplicar ganhos de escala. No polo oposto, vive uma miríade de pequenas e microempresas, além de profissionais autônomos, cuja atividade principal é criar. Entre esses dois lados, temos um fosso que se aprofunda a cada revolução tecnológica e consolidação empresarial. A razão para a existência de tal fosso é precisamente o que discutimos aqui: a distinção incontornável entre criação e reprodução em escala industrial. Diante da impossibilidade de apropriar ganhos de escala no ato de criar, o lado industrial da equação foi levado a terceirizá-lo inteiramente. Restaram ali apenas os processos altamente escaláveis de gestão financeira, comércio e infraestrutura de distribuição. No entanto, isso implica em um problema. O propósito fundamental da indústria criativa, aquilo que os consumidores buscam, é precisamente o produto da criação, mas o ecossistema em que a produção desse insumo fundamental deve ser desenvolvido, selecionado, financiado e recompensado, permanece impermeável às ferramentas de gestão da indústria.
Na busca para contornar o problema, diferentes soluções emergiram, todas imperfeitas, sendo algumas francamente disfuncionais. Entre as soluções disfuncionais, alguns gigantes da mídia, notadamente na indústria audiovisual, a despeito do seu potencial ilimitado para agregar novo conteúdo, reproduzem o velho modelo da mídia tradicional. Selecionando conteúdo considerado profissional, mas o fazem em ritmo de conta-gotas, por meios ineficientes, enviesados e permeados por conflitos de interesse. Imagine quão exasperante deva ser para titãs da inteligência de dados e da automatização decisória, como Amazon ou Apple, alimentar seus serviços de streaming exclusivamente pelas mãos de executivos e tecnocratas espalhados em escritórios regionais, lendo roteiros e fazendo pitchings para selecionar projetos por meio de critérios pouco definidos e fracamente correlacionados aos resultados, redundando em decisões circunstanciais, quando não casuísticas. Outras empresas, como Google (Youtube), Meta (Facebook) e outras, abordaram o problema descartando como um todo o mercado tradicional e profissional de conteúdo, abrindo suas prateleiras para criar um ambiente de simetria entre consumidores e criadores. Claro que, ao fazê-lo, também criaram um mercado caótico de conteúdo amador eivado de vícios, onde se substitui jornalismo por Fake News, conhecimento por teoria conspiratória e excelência por celebridade. Esses vícios já estavam presentes na mídia e na cultura de forma geral antes do advento da Internet 2.0, mas os mecanismos criados no século XXI ampliaram em muito seu alcance e efeito, ou melhor, reproduziram esses vícios de comunicação em escala industrial. Na impossibilidade de criar em escala, os gigantes da tecnologia de mídia comoditizaram a criação e passaram a agregar criadores e consumidores em lugar de conteúdo. Como queríamos demonstrar, essas empresas, por seu tamanho descomunal, usam a escalabilidade como defesa contra sua própria incapacidade de diferenciação. Afinal, a marca registrada do conteúdo nessas plataformas públicas é justamente a indiferenciação. Como se vê, trata-se de uma solução imperfeita, não apenas por alienar a empresa da real proposta de valor do negócio (a atividade criativa), mas também por abster-se de recompensar de forma sustentável o criador, condenando-se a reciclar constantemente modismos, memes, boatos e outros conteúdos perecíveis e de baixo valor agregado. Com isso, essas empresas ficam reféns de uma fonte exógena de receita: a publicidade. Trata-se de um arranjo precário e perigoso, já que a publicidade é uma modalidade de comunicação em decadência, cuja relevância e efetividade diminui rapidamente.
Sendo empresas de tecnologia informacional, afeitas e habituadas ao ambiente dos algoritmos e da inteligência artificial, as gigantes da economia criativa não deixariam de patrocinar, ao menos como projeto paralelo, tentativas de desenvolver máquinas de criação. O histórico dessas iniciativas é fascinante e merece uma incursão mais profunda. Por hora, basta dizer que os mecanismos de automação de alguns processos tradicionalmente vistos como próprios do autor artístico, ao contrário de sugerir a obsolescência do criador humano, vêm sendo apropriados por estes, ano após ano. É lógico que isso aconteça. Os algoritmos e redes neurais só podem produzir resultados recombinando o que já foi criado. A evolução dessas ferramentas confere uma granularidade impressionante a esses elementos. Isso não muda o fato de que são elementos técnicos e não propriamente criativos. O caso recente de um sistema chamado DALL-E2, capaz de criar imagens de boa qualidade a partir de textos descritivos, é um ótimo exemplo, dividindo opiniões entre os artistas gráficos. Redes neurais são muito boas em perceber padrões, reproduzi-los e recombiná-los. Artistas tendem a receber com mistura de entusiasmo e desconfiança ferramentas que sirvam de atalho para facilitar a realização técnica de suas ideias. Novas ferramentas mudam o patamar do campo em que o artista exercita suas sucessivas iterações entre ideia e ferramenta. São essas iterações, guiadas pelo artista com ajuda da ferramenta, que constituem o processo de criação. Tanto faz se a ferramenta é pincel, câmera, máquina de escrever ou uma inteligência artificial. Enquanto escrevo este texto, uma extensão de software corrige meus erros de digitação, sugere construções gramaticais mais claras, critica minhas frases muito longas, cassa o excesso de adjetivos e propõe mudanças de pontuação. A ferramenta faz isso com parâmetros selecionados por mim mesmo e aprende com a experiência ao interagir comigo. Aceito algumas sugestões e rejeito outras, mas não imagino que a extensão esteja criando este texto, nem projeto um futuro no qual a máquina não precise mais de mim. As tentativas de dar escalabilidade ao trabalho criativo por meio de inteligência artificial são muito úteis para essa outra finalidade: desmascarar trabalhos não-criativos disfarçados de trabalho criativo. DALL-E substitui o trabalho técnico e mecânico de reciclar clichês visuais e reproduzir estilos já bem definidos, mas permanecerá dependente do agente humano para a concepção deliberada e, mais importante, para a filtragem dos resultados.
Os fatores descritos até aqui demonstram não apenas a hipótese da incompatibilidade entre atividade de criação e a produção em escala industrial, mas também alertam para a urgência em reconciliar esses dois aspectos fundamentais da sociedade contemporânea. O importante aqui é não cairmos em ilusões, acreditando que avanços tecnológicos futuros poderão dar conta de automatizar a capacidade criativa humana ou possibilitar “criação em escala industrial”. Inovação e tecnologia são capazes de grandes feitos, mas o problema não é técnico, é ontológico. Automação é repetição de ato original humano. A própria ideia de criação permanecerá elusiva, sempre além do horizonte, impondo a dependência de todo o edifício cultural ante aos acontecimentos advindos da intervenção humana. O impulso da criação seguirá inovando e diferenciando, criando e destruindo os impérios da repetição. Também continuará sendo um monopólio inextricável das pequenas empresas, das pequenas comunidades de criadores e, em última análise, dos artistas individuais e suas mentes habitadas por arquétipos e estereótipos, memória e cultura, instinto e consciência.