Introdução: Um Experimento de Narrativa emergente

Introdução: Um Experimento de Narrativa emergente
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Após este texto introdutório, a narrativa ficcional de “Os Cavaleiros de Lim” será publicada aqui no site em episódios semanais. Cada episódio representa um turno de uma partida do game “Polytopia”, jogada por mim e adaptada para ficção.

Existem muitas camadas em qualquer processo de criação. Em “Os Cavaleiros de Lim” essa regra geral se multiplica. Talvez a única forma clara de introduzir este material seja recompor o empilhamento dessas camadas de forma a contextualizar os estranhamentos presentes nesta ficção repleta de hibridismos e acometida por mudanças de ritmo, gênero e foco narrativo.

Essa história começa quando conheci o jogo Polytopia e imediatamente me apaixonei (eufemismo para “desenvolver um vício severo”) por ele. The Battle of Polytopia é um jogo do gênero de estratégia em turnos e foi criado pelo estúdio sueco Midjiwan AB. A melhor forma de descrever o jogo é uma versão minimalista de jogos como Civilization ou Age of Empires. Esse minimalismo me passa a ideia de um híbrido entre as supracitadas franquias de sucesso e um tabuleiro de xadrez.

Nele, o jogador se ocupa de desenvolver uma tribo enquanto está em guerra com outras tribos. Sendo um jogo de estratégia, não há praticamente trama narrativa ou personagens significativos. O que existe ali nesse sentido está sugerido no design, na mecânica do jogo e nos poucos e curtos textos que surgem na tela.

Apesar dessas características indicativas de um jogo casual e com mais apelo ao raciocínio lógico do que às emoções, o gênero civilizacional e de guerra traz uma sensação, ao menos na minha cabeça maluca, de imersão numa narrativa épica em miniatura. É a luta e glória de um povo ao longo de uma era turbulenta, representada por peças em um tabuleiro.

Essa sensação me remete aos conceitos de narrativa embutida e narrativa emergente descritos no livro “Regras do Jogo: Fundamentos do Design de Jogos” de Eric Zimmerman e Katie Salen. Muito resumidamente, os autores explicam que os jogos têm duas camadas narrativas, sendo uma criada pelo autor e outra pelo próprio jogador ao atravessar uma partida. Jogos, como livros e filmes, têm estrutura narrativa. Existe ali, em maior ou menor grau, uma história que precisa ser criada ou ao menos sugerida pelo autor. A grande diferença é que os jogos são interativos e, por isso, ao contrário de filmes e livros, cada partida é diferente da outra conforme as ações do jogador produzem consequências diferentes para o andamento da história.

O trabalho do autor no roteiro de jogo é criar as fundações que constroem o universo narrativo em que a história irá se desenrolar quando o jogador embarcar na jornada. Essa camada é a narrativa embutida. Em alguns jogos, a narrativa embutida é densa e detalhada dando ao jogador pouco “poder dramatúrgico”, por assim dizer. Em outros, como é o caso de Polytopia ou os jogos chamados “de mundo aberto”, a narrativa embutida é menos dominante e o jogador tem uma liberdade maior para variar ou mesmo subverter as premissas sugeridas pelo autor. Essa segunda camada, a história daquela partida única, é a narrativa emergente, pois ela justamente “emerge” apenas no momento em que é jogada. É a história daquela partida.

Esse conceito me fascina por uma razão talvez inusitada (prepare-se pois a coisa vai ficar mais viajante agora). Sendo um praticante e estudioso da escrita e do storytelling desde que me entendo por gente, aprendi que toda narrativa tem essas duas camadas. Quando você lê um livro ou assiste a um filme, o que você está consumindo ali é o relato de uma partida em que o jogador foi o próprio autor. 

No processo de criação de uma história, o autor passa inevitavelmente por essas duas camadas de criação. Inicialmente, a partir da inspiração (ou da encomenda) o escritor ou roteirista estabelece a narrativa embutida, composta pelo contorno geral da trama, o caráter dos personagens, a criação dos eventos chave que colocam a história em movimento e as regras daquele universo. Isso pode ser feito de forma metódica e planejada ou de forma mais intuitiva, a depender do temperamento de cada autor ou da natureza do trabalho. A escrita de uma série de TV, por exemplo, exige uma narrativa embutida mais estruturada, chamada “bíblia”. No extremo oposto, um autor como David Lynch parte de uma narrativa embutida minimalista diretamente para o jogo, processo que ele descreve em seu livro “Em Águas Profundas” como lançar um anzol nas profundezas do inconsciente e pescar de lá a história. Para nós aqui é a “mecânica de jogo” em torno da qual ele criará a obra (a história da partida). 

Seja num caso ou no outro, qualquer autor com alguma experiência sabe que a história só toma forma durante o processo de sua escrita (o effort de Richard Serra, sobre o qual já escrevi) e que as decisões tomadas no calor da redação muitas vezes determinam o rumo da narrativa. A história e a trama continuam lá, embutidas, mas o “como” ela acontecerá, em forma de ações, palavras e sentidos, é algo que emerge no processo de jogar livremente dentro dos espaços deixados em aberto no planejamento. Muitos autores já descreveram isso com expressões do tipo “os personagens criam vida própria” ou “a história me arrastou numa direção inesperada”. Não é mistificação. Pelo contrário, é a única forma de fazê-lo. Uma viagem de férias é planejada justamente para que possamos improvisar de forma espontânea durante os dias em que lhe tiramos proveito. A prova disso é que todo autor experiente também lhe dirá que o processo de reescrever é parte integral do trabalho de criar um livro ou filme, da mesma forma que jogar diversas partidas é parte integral do processo de extrair a melhor experiência possível de um jogo e uma boa viagem pede uma segunda visita.

Pois bem, minha fascinação pré-existente por essa reflexão, combinada ao meu vício em Polytopia fizeram com que, durante uma partida do jogo, surgisse em minha mente uma voz que narrava cada turno, movimento e decisão como aquele conto épico de uma guerra mitológica. Essa brincadeira não era muito diferente do hábito que aprendi com meu pai, de narrar os jogos de futebol de botão como um locutor de rádio faria diante de uma partida real. No entanto, a distração se transformou subitamente numa hipótese. E se eu tomasse notas de uma partida de Polytopia, esboçando ao longo do jogo um relato daquela narrativa emergente?

A ideia foi irresistível, em detrimento dos outros vários projetos criativos que eu já estava tocando. Apenas o processo de jogar a partida fazendo anotações e capturando as telas do celular para registro já durou muitos dias, consumindo-me as poucas horas livres. Mas valeu a pena. A experiência foi divertida, instrutiva e surpreendente. A experiência de jogar Polytopia por si só já teve grandes ganhos, pois cada decisão foi bem pensada, cada momento foi degustado com mais prazer. Um movimento não era mais apenas um movimento. Era a decisão de vida ou morte de um personagem com nome e história, algo que precisaria ser justificado nos livros de história e determinaria o futuro de novas gerações. Quanto à narrativa que propriamente emergiu, não poderia ter sido uma confirmação mais definitiva daquela teoria. O jogo, por ter um adversário (ainda que máquina) cria situações e desdobramentos narrativos que um autor em pleno gozo de poderes absolutos sobre os acontecimentos, jamais escolheria. Isso me obrigava a integrar os imprevistos à trama, mesmo a contragosto, e procurar um sentido maior ao que eu mesmo não faria acontecer por livre e espontânea vontade. De fato, ainda relativamente iniciante no jogo, eu não tinha nem ao menos a certeza de que a partida não terminaria em derrota.

Ao fim da partida, o resultado rabiscado telegraficamente ao longo dos dias estava repleto de soluções criativas, extrapolações delirantes e muitos problemas técnicos de escala geográfica, temporal e de continuidade dramática que ainda estão presentes na forma atual do texto. Nada disso, no entanto, diminuiu minha satisfação com o resultado. Estava ali diante do esboço de um saga épica, multigeracional. Isso me motivou a encarar a segunda e mais trabalhosa etapa do trabalho: desenvolver o texto, dando carne e sangue ao esqueleto de notas que ali estava.

Para fazer justiça ao desafio que propus a mim mesmo, fui fiel ao compromisso de não mudar nada do que efetivamente emergiu durante a partida ou das anotações resultantes. A escrita ocupou-se de detalhar, ampliar e contextualizar os desdobramentos da trama, emprestando-lhe um caráter mais literário. Esse objetivo foi perseguido com dificuldade e, como disse, permiti que o resultado (ao menos por hora) fosse imperfeito, colocando a meta de completar a tarefa acima da ambição de ter um romance digno de virar série na HBO. “Get it done, then get it right” é outra lição que aprendemos com a experiência da escrita criativa.

Os problemas, defeitos e dificuldades impostos pela proposta têm por si mesmos um grande valor instrutivo sobre a criação narrativa e especialmente sobre o gênero da adaptação entre mídias. De saída, temos que Polytopia trabalha com uma escala de tempo e espaço intuitivamente grande. Embora não exista essa métrica no jogo, a partida claramente se realiza por continentes e mares e se estende desde a origem de uma modesta aldeia habitada por guerreiros que usam tacapes e colhem frutas até o escopo de um império que constrói galeões de guerra e armas de cerco. Dito isso, seria possível afirmar que a árvore tecnológica que vai sendo desenvolvida pelo jogador ao longo da partida sugere seu início na pré-história recente e se estende até a idade média. Julgando pelo primeiro ato da epopéia, “Os Cavaleiros de Lim” poderia perfeitamente ser uma história de outro universo narrativo criado por mim e Marcial Renato, um mundo de realismo mágico, ambientado na pré-história recente. Mas pergunte a qualquer autor sobre a viabilidade de romancear 4 mil anos de história e verá o problema que isso envolve. 

Há portanto no jogo um imbricamento de diferentes escalas de tempo e espaço de difícil conciliação. A partida que deu origem a história dos Cavaleiros de Lim, teve 34 turnos e algumas batalhas se estenderam por diversos turnos, o que equivaleria a uma guerra de três mil anos e cercos a cidades com séculos de duração. Não bastando isso, no exercício da adaptação narrativa, a escala vai mudando. No começo da partida, com um único cavaleiro em sua aldeia, foi inevitável dar-lhe nome e status de protagonista mas, com o passar dos turnos, novas peças (cavaleiros, espadachins, etc) tiveram que representar grupos cada vez maiores de indivíduos para manter coerência lógica. Conforme esse enquadramento se afasta e se amplia, os personagens que eram trabalhados de forma mais íntima no começo da história foram se dissolvendo até que a participação ativa de indivíduos da narrativa desaparece completamente antes do fim do texto, algo que eu mesmo reprovaria veementemente numa avaliação ou consultoria. 

Da história de um homem, progredimos até a história de um povo. De um mito fundador, baseado em um líder profético, migramos para um livro de história militar, muito mais preocupado com a descrição de movimentos e estratégias do que com os dramas dos guerreiros. Esse aspecto (de história militar) é mesmo inevitável. Afinal, Polytopia é um jogo de guerra e há muitos exemplos de autores, como Steven Pressfield, que combinam de forma brilhante história militar com boas narrativas centradas em personagens, de forma que nada disso é desculpa e não faltam formas de solucionar problemas assim em um texto. 

No esforço para manter presentes os personagens, boa parte da história gira em torno de três gerações de uma dinastia, desde de seu fundador até o fim da guerra. Faz sentido uma guerra ambientada na antiguidade que atravessa três gerações, restando aí o problema da compressão da evolução tecnológica nesse período que, na vida real, não passaria de um século. Pelo prisma de uma narrativa mitológica, esse problema métrico poderia ser tranquilamente ignorado. No mito, um personagem pode representar sozinho várias gerações de uma dinastia. A estrutura do mito tem esse aspecto mágico fascinante, em que a identidade de um indivíduo pode ser transferida para outro sem problema e, quando você vê, matusalém chega aos 969 anos de idade. Isso acontece porque, no mito, personagem e papel se fundem em um único ente. O mito não conta a história do Ego, mas do Self.   Como já disse, esses são problemas fascinantes. Encontrá-los e explorar formas de resolvê-los é boa parte do valor e do prazer desse exercício.

Por fim, devo registrar aqui que Polytopia conta com uma comunidade de jogadores vibrante e apaixonada. Assim como eu, muitos desses se aventuraram por extrapolações e narrativas que compõem um interessante “lore”. A palavra inglesa para “folclore” é usada para identificar um conjunto de crenças compartilhadas pelos fãs de um universo ficcional a respeito de coisas que não estão explícitas no “cânone”, ou seja, na narrativa explícita do autor. O “lore” é um híbrido instigante pois é uma extensão da narrativa embutida, feita pela comunidade de “jogadores”, ou seja, aqueles que interagem com a obra. O lore de Polytopia pode ser encontrado na página de internet do seu fandom mas vale aqui a ressalva de que “Os Cavaleiros de Lim”, embora tenha pontos de convergência e coincidências com o universo do fandom, não se baseou naquele material nem buscou fidelidade a ele que, ademais, é por si bastante variado.

Feitas todas as necessárias advertências e o devido relato do experimento, julgo que o leitor está preparado para este texto sui-generis, que ilustrei com as capturas de tela da partida que lhe deu origem e ainda outras imagens, obtidas na internet e cujos direitos de uso não adquiri (a mera pretensão de determinar origem e autoria para dar os devidos créditos torna-se cada dia mais difícil). Espero que você se divirta lendo “Os Cavaleiros de Lim” tanto quanto eu me diverti fazendo.

A história começa em: 0. A Voz do Deserto

Daniel Mattos

Daniel Mattos

Nasceu em Petrópolis, em julho de 1975 e recebeu o nome de Daniel Vidal Mattos. Desde então está em busca de respostas sobre o que é ser Daniel Vidal Mattos, nascido em Petrópolis em julho de 1975. Não se parece com a foto aqui publicada.

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